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terça-feira, 6 de abril de 2010

“O bode introjectivo.”



Aquele que está cego e no entanto pensa que aquilo que vê é a sua realidade e a do outro, aquela partilhada, está no entanto tão enganado quanto o outro cuja visão não está, supostamente, afectada. Ambos, um com o outro, interagem dissonante e dissociativamente, numa forma assincrónica relacional.
(O primeiro) Aplica, como forma de base, inalterável e cristalizante, essa pré-premissa de que o funcionamento do mundo, interno e/ou externo, se regula por esses padrões daquilo que a sua visão lhe proporciona, generalizando assim o todo à sua imagem parcializada.
Poderia até ser uma forma sanigena de psicotismo se a afectação não fosse prejudicial, por exemplo, ao ponto de actuar em sentidos e direcções irreversíveis, isto é, de eliminar todas as possibilidades de ver pela cura da visão, e não pela possibilidade de cura pela alteração do mundo à imagem da sua visão cega actual. Não acredita realmente que a visão cega tem cura, ou tem medo do que a sua visão possa observar depois de curada? Há ainda a possibilidade de ter a noção de que não aceitará o que a sua visão vier a ver depois de curada, até porque a cura pode ser tão fictícia quanto a cegueira que apresenta... (O que vê e tão inaceitável e doloroso que é “preferível” tornar-se cego a ver essa dolosa realidade…) (A irreversibilidade de se tornar realmente cego e de realmente não ver.)
(O primeiro) Pede ao outro que veja, pede ao outro que confirme a sua visão, pede ao outro co-responsabilidade pela e para a existência dessa visão; pede ao outro ajuda manipulando-o como se manipula a si próprio descontroladamente, pede ao outro que seja uma marionete pedindo-lhe ainda que apesar disso acredite que tem vontade própria; pede ao outro que não seja outro e seja parte dele próprio, que se funda com ele, e faça parte do seu plano de adulteração do próprio, e principalmente que não só não seja um bloqueador dos objectivos de transmutação da realidade, como também seja alimento corroborativo e confirmativo de que ele não só não está cego, como até vê melhor que os demais. Pede ao outro que participe, para só ele participar.
O outro, aceita participar, (através da pseudo-imposição de “regras relacionais explicitas”, que o primeiro diz aceitar sem as compreender, regras diferentes daquelas que a visão do primeiro lhe permite aceder), até ter percebido que também ele não aguenta ser o que não é e que o primeiro lhe pede insistentemente que seja, um não ajudante, um possibilitante apenas, de que afinal estar cego é também uma forma salubre de ver.
(O primeiro, o outro.) Repete. Abandona. Encaminha. O insuportável conteúdo introjectivo, (que) tornou evidente a impossibilidade relacional.
Ambos percebem (n)a assintonia, a morte, a perda, o tempo. “Afinal de contas a culpa de estar cego antes de conhecer o outro é desse outro que agora conheci.”. Agora, o outro, passou a ser o bode introjectivo para a existência da cegueira do primeiro.

Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 30/03/2010