Bem vindo(a) ao PsicologiAveiro, o blog do ITAPA.
Artigos principalmente sobre Psicologia Clínica de Orientação Analítica e Psicanálise.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

“Do estado fusional ao indivíduo…”


A divisibilidade do estado fusional em trâmites de ainda pseudo-individuação é um processo cujos desenvolvimentos tendem a ser de ténues diferenciadores de quais dinâmicas jogam para pertença de um e de outro estado. A (re)necessidade (re)corrente de voltar ao anterior estado fusional de padrão intra-relacional, parece ser um elemento vital que entende fornecer competências para que o indivíduo se torne num ser individual, de forma “quase” protegida, segura e confiante quanto baste, agora no mundo externo tal como no mundo intra-uterino.
Neste sentido circunscrito, nota-se de forma evidente que quando não existe a possibilidade físico-mental de voltar fornecer um conteúdo “pseudo-fusional” adequado, a esse ainda “pseudo-indivíduo-mental”, este último tal como o primeiro, podem “apenas” retardar ou então eliminar o processo comum “padronizado” de “fusão-individuação” inicial.
Este comprometimento processual desde que meramente retardatário, não aniquila as intra e inter competências, nem os intra e inter papéis, quer fusionais, quer individuais, mas no caso do prolongamento excessivo (ou da ruptura total) da desvinculação forçada e não desejada por parte daquele que ainda não é psiquicamente individuado, então muito dificilmente isso não lhe trará consequências nefastas para o seu bom desenvolvimento mental, precoce e futuro.
Não é aqui que começa a vida, mas é agora que essa entra em contacto com o mundo extra-uterino, e é agora que pela primeira vez existe a possibilidade de separação “real” do anterior estado de fusão, e essa é uma possibilidade cuja desejabilidade de concretização é não só elevada como imprescindível, a seu tempo e de forma doseada, com o mais volta que vai que ainda é característico e necessário, dar continuidade ao vínculo que permite a desvinculação enquanto processo saudável e natural, isto é, a desvinculação apenas no sentido do estado pré-precoce de fusão mãe-filho no pós-parto.
Se neste primeiro contacto com a agressividade do mundo externo não existir a protecção fusional materna, o indivíduo recém-nado poderá tender a desenvolver características de insegurança, ansiedade e depressão precoces (entre outras), que irão quase necessariamente repercutir-se também mais tarde de forma auto-incompreensível ao próprio indivíduo, já que esses elementos não irão estar disponíveis ao livre acesso consciente.

Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 04/11/2008

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

“Exteriorização real ou fantasmática?”


Entre o pensar que se exterioriza e o exteriorizar-se de facto, existem diferenças significativas no funcionamento mental de cada uma das formas de “pseudo-exteriorização” (ou “exteriorização fantasmática” ou “exteriorização/internalização psicóticas”) e exteriorização real (materialização da exposição da realidade intrapsíquica ao mundo externo).

Na exteriorização real, o indivíduo atinge um nível real de contacto com o mundo externo e com os objectos que o compõem, o mundo da “realidade partilhada” pelos demais. Na “exteriorização fantasmática” o sujeito pode até pensar que comunicou com o “exterior”, mas o que de facto fez foi construir em si e através de si próprio uma continuação da realidade intrapsíquica anterior como se esta fosse proveniente da relação com conteúdos externos. Assim, por via de um potencial padrão relacional induzido/imprimido pelo meio externo primário (em consonância com as características idiossincráticas pessoais), o sujeito pode elaborar um padrão relacional psicótico (inconsciente) como forma privilegiada de se “relacionar” consigo e com o mundo.

Esse padrão de relacionamento (ou da falta dele) com a “realidade partilhada”, na forma tradicionalmente inconsciente, pode levar o indivíduo a ter a consciência que a “verdade” formulada intrapsiquicamente é compatível com a “realidade partilhada”, não se apercebendo assim que essa é uma “realidade auto-construída” e não uma que se construiu em contacto com os frutos relacionais “verdadeiros aos olhos dos outros”.


Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 14/10/2008

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

“Cuidado, eles podem não saber o que fazem…”


O objectivo deste escrito, pretende ser apenas um fomento para a discussão, que apelido de alerta. É de “estados auto e hetero (pseudo?) hipnóticos” induzidos de forma espontânea e não intencional, e logo em ambiente nada controlado, que vos pretendo falar. Da delicadeza e hipotética subjectividade a que este tema não consegue escapar, tentarei contribuir para que se possa perceber na prática do que se trata. Unicamente para que não se complexifique em demasia esta abordagem, irei deixar de lado todos os estados induzidos cuja fonte seja de indução externa ao nível de substâncias que activam e alteram o funcionamento neuronal, as vulgas drogas, lícitas ou ilícitas.

Assim, para que seja possível que se induza ao próprio ou a outros um “estado hipnótico” de forma inconsciente, espontânea, e não intencional, é necessário que as características do objecto/pessoa, em que é induzido tal estado, sejam propícias ou até adequadas a esse feito, isto é, a globalidade estimulante (interna e/ou externa) percebida pelo receptor em conjugação com as suas predisposições idiossincráticas são os principais determinantes da possibilidade de alguém se auto hipnotizar “sem querer” ou de ser hipnotizado “pelo meio” também sem o meio ter essa intenção clara de ser um meio hipnotizador e/ou hipnotizante.

A discussão do parágrafo anterior, é exemplificativa da generalização base para a fundamentação do tema, mas o meu objectivo compromete-me a ser mais específico.

Vejamos então o seguinte exemplo, para tipificar a “hetero indução hipnótica descontrolada”.

É prática comum (e até significativamente aceite pela comunidade clínica e científica) o uso do dito “relaxamento” como forma técnica de complemento terapêutico, como forma técnica de complemento de aulas de “yoga”, como forma técnica isolada para atingir os efeitos a que o próprio nome se propõe, e em tantas outras quase vulgarizadas situações. Claro que existem diversas tipologias para a técnica de relaxamento, mas para este exemplo serve-nos basearmo-nos apenas no “relaxamento conduzido” quer por “técnico qualificado”, quer por “técnico sem qualificação”. O “relaxamento conduzido” pode ser o estimulante particular do mundo externo que permite desencadear o “sono hipnótico” no indivíduo cujas especificidades o levem a “perceber” esse estímulo como um “alheador” eficaz da realidade que pode ser encontrada quer no estado de vigília, quer no estado de sono, ou seja, situa o individuo num estado “provisório (e/ou permanente)” da área de transferência vigília/sono, que é aquele específico momento em que “sabemos” que ainda estamos acordados e ao mesmo tempo já estamos a dormir (será de boa conveniência recordar que a primeira fase de sono é a do “sono profundo”). Se para a maioria das pessoas o “relaxamento conduzido” produz os efeitos benéficos a que ele se destina, existem pessoas que a “viagem conduzida” os leva a entrarem em “hipnose pura”. O problema, grave, é que na grande maioria das vezes em que isso acontece nem o técnico, nem a pessoa “relaxada” se apercebem que algo não correu como o previsto (até porque muitos relaxamentos são feitos em grupo), e que aquilo que era suposto ser um “mero” relaxamento acabou numa hipnose não intencional. As consequências de uma ocorrência deste tipo são quase incalculáveis, visto que os estados hipnóticos permitem tanto curar um doente como adoecer um saudável. Ora se nem sequer se chega a saber que esse estado foi induzido, tanto pior, pois fica ao sabor do vento, a sugestionabilidade activa e activada sem se querer, isto é, a pessoa pode desde ser “acordada indevidamente” até ser deixada no próprio estado hipnótico sem se ter essa noção.

E, o seguinte exemplo, para tipificar a “auto indução hipnótica inconsciente”.

Uma festa de transe, uma noite numa discoteca, uma ida a um concerto, tal como, uma sala de aula, um ambiente familiar ou um ambiente inóspito, ou ainda, um simples pensamento, uma lembrança ou recordação, etc. Qualquer um pode servir com a mesma “perfeição” para desencadear um processo (“auto-hipnose”) que depois passa a ser (quase) exclusivamente intrapsíquico, isto é, um determinado tipo de situação externa/interna pode ser entendida pelo indivíduo como “adequada” para que ele utilize uma técnica que desconhece que possui como estratégia de adequação mental às “exigências” que percebe do meio/de si próprio. Muitas vezes são relatados como “apagões” e a pessoa nem se lembra de ter estado em determinado local por determinado período de tempo (lembrem-se, sem o efeito de qualquer tipo de drogas/substâncias externas).

É claro que convém alertar que não é comum, ou o vulgarmente referido como normal, que isto aconteça, quer na forma auto, quer na forma hetero induzidas. Uma das características que pode propiciar a elevação e potenciação das possibilidades de indução de estados hipnóticos não intencionais (que podem ser, “bem ou mal”(?), confundidos com estados psicóticos ocasionais/esporádicos), são as características do foro psicótico, já que essas características (embora predispostas ao objecto/pessoa) para se tornarem evidentes necessitam muitas vezes de serem alimentadas ao longo da vida (apesar de existirem casos de psicoses graves que se tornam evidentes desde “demasiado cedo”). Essa alimentação é nalguns casos dirigida à perturbação e/ou destrutividade afectiva/relacional, que no caso de existir a tal predisposição psicótica, esse tipo de características evidenciam-se com intenções diversas de “homeostase afectiva/relacional” ou de “equilíbrio humanamente suportável”, ou seja, o indivíduo utiliza o seu psicotismo (ex. alheamento da pseudo realidade externa, construindo uma realidade mental mais suportável e alternativa à anterior) como defesa e em defesa da preservação dos afectos, mesmo que já “infligidos”.

Esta variante de manifestação psicótica de conjunturas de alheação do mundo externo, formalizadas pelo indivíduo em material psíquico onde a realidade idiossincrática passa a realidade (auto) geral, na prática envolvem momentos de “sono hipnótico”, cuja percepção que a pessoa tem de si própria, e a que os objectos/pessoas externos têm dela, não é muitas vezes suficientemente assertiva para que seja possível aperceberem-se que tipo de estado mental se encontra em funcionamento a dada altura e em momentos bem definidos.

No entanto, é ainda necessário referenciar que tanto quanto for “permitido”, podem e devem ser efectuadas medidas preventivas (mais do que remediativas), pelo menos no que respeita às actividades clínicas que possam induzir estados mentais/hipnóticos não intencionais, e logo não desejáveis. Ou seja, no caso do exemplo do “relaxamento conduzido” enquanto ferramenta complementar de trabalho terapêutico, este deve ser implementado apenas após uma análise ampla e cuidada de cada indivíduo da preexistência de características propícias à indução hipnótica não intencional, caso contrário poderá trazer consequências muito indesejáveis para o “relaxado”. No meu entender, para além disso deveriam também ser fomentadas medidas de regulamentação do exercício de práticas não clínicas de “relaxamento”, pelas mesmas razões referidas anteriormente. Não querendo centrar a questão no exemplo do “relaxamento”, ainda assim apraz-me dizer que uma técnica como esta, aparentemente ingénua e inofensiva, pode tornar-se um mecanismo muito eficaz de indução hipnótica não intencional em objectos/pessoas predispostas, e logo uma ferramenta que pode ser amplamente perigosa e altamente nefasta.

Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 30/09/2008

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

“A mediatização do pseudo-saber.”


A importância que parece ter adquirido a cultura da incessante procura obsessiva do conhecimento ou do pseudo-saber adquirido, almeja conduzir-nos para a psicose da busca de respostas, tantas vezes a perguntas que nem são nossas e/ou a questões que nunca fizemos, ou que nem seria adequado um dia as fazermos.

Caracterizem a vosso gosto, “alguns daqueles” cujas aparições, públicas ou privadas, frequentes e dissociadas de temática especializada, aludem e iludem, respostas de auto-conceito em nome da dita nomenclatura científica que trazem associada ao culto profissional envolvido, ao invés de (des)iludirem simplesmente, pela (des)mascaração da ignorância que a todos nos caracteriza.

Contudo, a velha necessidade de satisfação, real ou fantasmática, vai continuar a ser desenvolvida e a prevalecer, afim de minimizar danos, porventura maiores da insatisfação, do que da satisfação mística, ou seja, parece que mais vale pensar-se que se sabe mesmo não se sabendo até que ponto é essa sabedoria genuína, do que sofrer-se as consequências de se pensar que não se sabe de facto.

Assim, esta “nova” cultura do conhecimento, parece adquirir contornos de “culto do conhecimento”, já que a essência e os processos psíquicos envolvidos são em tudo idênticos aos que se encontram noutros cultos humanos, como é o exemplo dos “cultos de fé”.

Deixo também “a gosto” e à “vossa vontade” a continuidade do pensamento, no sentido das consequências da hipotética veracidade do pensamento anterior, sendo tão óbvias e tenuemente claras quanto coexistentes em contradição.


Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 16/09/2008

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

“Ficar pior, para poder melhorar…”



Quando se procura um profissional de saúde mental com objectivos fundamentados para a resolução de questões de foro patológico, isso significa normalmente que a pessoa espera melhorar a sua condição de doença, o comummente “ficar bom”.

Entende-se na maior parte dos casos que assim seja, pois se o objectivo fosse ficar (ainda) pior, algo de (ainda mais) “estranho” se passaria. No entanto, há casos em que para atingir o objectivo de melhorar, ou mesmo de “ficar bom”, é necessário e mesmo imprescindível que se piore primeiro.

É necessário explicar que este “ficar pior” tem mais a ver com a percepção que o próprio paciente tem do desenrolar dos (auto) acontecimentos (mentais), do que da condição semi-objectiva que esse apresenta, ou seja, o paciente sente-se de facto pior, mas esse será um dos passos do caminho que precisa de dar, para que o ficar melhor posterior seja realmente verdadeiro, sustentável e duradouro.

Vejamos o seguinte exemplo. Um paciente cuja perturbação tem como um dos principais factores etiológicos o “evitamento mental presente” de um acontecimento passado altamente doloroso. Doloroso ao ponto, que a maneira que esta pessoa encontrou para lidar com sofrimento envolto a esse acontecimento, foi dissociar esse acontecimento da sua realidade mental, isto é, na sua psique (consciente) é (quase) como se nada tivesse acontecido, como se tivesse apagado ou transformado essa realidade numa muito mais suportável e menos custosa de admitir que fizesse parte da sua vida. Este paciente ao procurar ajuda de um profissional de saúde mental, vai necessariamente ter que aumentar o seu nível de sofrimento (que já era absolutamente gigantesco), pois a temática que tanto “quer” evitar será potencialmente trazida novamente à consciência afim de ser reinterpretada. Sem essa análise do passado não será possível melhorar realmente, e, com essa análise do passado irá certamente percepcionar-se pior do que o que estava antes de procurar ajuda, pois o reencontro com a origem da dor provoca uma dor maior do que a que sentia antes de procurar ajuda profissional. Essa dor mais forte, por sua vez tem tendência a desregular diversas componentes mentais e funcionais da vida da pessoa, o que ajudará e muito essa pessoa a perceber que “está pior”. No entanto, o facto de vivênciar uma dor que já deveria ter sentido, atribuindo-lhe agora um significado combinado ao acontecimento que lhe deu (parte) da origem, faz com que a dor que sentia e que levou essa pessoa a procurar ajuda desapareça, pois essa dor é agora interpretada de forma adequada e congruente com a realidade vivida no passado, deixando essa realidade de estar indevidamente transformada e dissociada.

É claro que este é um exemplo que pela forma como está exposto diminui a complexidade do processo que é a necessidade de “pseudo ficar pior, para ficar melhor realmente”. Basta ver que, é possível fazer o contrário com muita facilidade, “ficar melhor, para ficar ainda pior depois”. Para isso bastaria que se diminuíssem as actividades sintomáticas iniciais sem que se trabalhasse a origem da problemática, isto é, se apenas se aniquilassem os sintomas. Ao fazer-se isso, primeiro a pessoa iria ter a percepção de melhoria, pois sentir-se-ia melhor, mas passado “algum” tempo seria inevitável que a dor voltasse, e tendencialmente até mais forte, pois a origem, a fonte da dor não teria sido trabalhada para que não mais a produzisse.

Quero também com isto dizer que é necessário perceber a dimensão real do que são realmente melhorias e do que é realmente ficar pior. O objectivo do terapeuta não pode (ou não deve) passar por “agradar” no imediato o paciente (e/ou as pessoas do seu mundo) com falsas melhorias e erradas expectativas.

Isto não quer também dizer que não se possa dar devidamente primazia à estabilização sintomática (vide, Castanheira, J. (2005), “A Primazia da Estabilização.” in Jornal de Albergaria de 14/12/2005) para que se possa mais tarde, com mais segurança e estabilidade do paciente (e menor risco de “crise inadequadamente desreguladora” por introdução de temas “delicados”), analisar adequadamente o passado perturbador e perturbante do paciente.


Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 29/07/2008