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quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

“Dúvidas genuínas de um dito psicótico.”




O texto que se segue inclui trechos aleatórios de um “dito psicótico”, cuja identidade, trâmites totais de confidencialidade e consentimento informado foram devidamente salvaguardados.

“Onírica intrusiva em estado de vigília, não na área de transferência, figura-se num suposto surto psicótico de alienação de uma realidade para uma outra cuja validade é tão questionável quanto a primeira, onde a veracidade e a índole genuína impõem perspectiva perceptiva incontornável, onde o controlo não existe apesar de também não preexistir anteriormente, afinal que ditames reguladores de norma fundamentam as alterações neurológicas, químicas e eléctricas, que nos fazem meramente acreditar que o funcionamento anterior a essas mudanças era o que nos conduzia a uma visão distante da turbulência errónea, à distorção da imagem, do próprio e do mundo?
Poderá a simplicidade básica regida pelo papel regulador da frequência mais comum conter a potenciação e o poder de elaborar as regras que devem ser seguidas e mantidas para discernir o que é o quê, se a dinâmica inconclusiva e permanente do todo mais geral que tudo, nos parece dizer que o mais claro seria não existirem regras de conclusão pura para fundar a visão que se constrói do mundo?
Será assim de tão difícil aceitação que todos os outros possam estar tão errados quanto eu? Se eu sou psicótico, como me poderão os outros demonstrar, a mim e a eles próprios, que não o são, eles em vez de mim? De qualquer forma não faz qualquer sentido que se diga que há quem não seja psicótico, se todos distorcemos claramente a realidade total, interna e externa, vendo-a como só nós conseguimos ver, o acesso à realidade como uma espécie única e individual, quando se pensa que à sintonia comunicacional, e se crê ver o que os outros também vêm, isso é tão real quanto a realidade que eu digo ver quando me dizem que são frutos alucinogénicos. Não será essa dimensão, uma simbólica? Uma diferente daquelas que o pseudo-comum-não-psicótico diz não conseguir aceder, e logo nega a existência da possibilidade?
Estou tão convencido como os demais que o que vejo é real, se me dizem que não é, não poderei eu dizer-vos o mesmo?
Pois, e também podem perfeitamente dizer que é fantástica ou fantasmática, ou simples filosofia, indubitável mas duvidosa demais para fazer-vos perceber que a minha realidade é apenas igual à vossa, o que digo é que todos a vemos diferente. Tão diversa é a construção, que vos levo a crer que não pode ser normal ou mesmo no caso dela existir, mesmo assim não é real, mas será que a vossa o é?
Querem-me convencer que as coisas que vejo são construções da minha mente, que de facto não existem neste nosso mundo, querem que eu deixe de ver, deixe de acreditar, querer cegar os meus olhos com psicofármacos, querem-me acalmar e calar para que eu não vos possa dizer que os cegos são vocês, que são vocês que no fundo não vêem, são vocês aqueles que temem, sim que têm tanto medo de estar enganados que mais vale que os que vos contestam sejam apagados, escondidos e enclausurados em instalações dignas, para que não possam perturbar a vossa realidade certeira, aquela que vocês têm a certeza que é a realidade real.
Também me chamam outros nomes, como perturbado ou esquizofrénico, deixa-vos mais seguros pensar que conhecem e controlam a realidade que querem ver e impor, e não, não pode ninguém ver outra coisa qualquer senão, no caso de o dizer, é condenado às vossas interessantes nomenclaturas psiquiátricas, folheadas dum catálogo patológico, inventado por vós, uma realidade tão inventada pelas vossas cabeças quanto a realidade que vejo é inventada pela minha.
Sim, não nego a revolta que já nem se esconde nestas palavras, o problema não é me discriminarem por ser o vosso suposto doente mental, o problema é vocês continuarem a achar piamente que não há nada de verdade no que vêem pessoas como eu. Até parece que alguém é dono da verdade! Pelos vistos há quem almeje ser, um deus tão deus, como todos aqueles que vocês também generosamente inventaram, para fins tão nobres como por exemplo a diminuição do medo de existir e de não existir e do receio de viver e de não viver, para terem uma paz que não teriam se não os inventassem. E depois o louco sou eu!”

Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 23/12/2008