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Artigos principalmente sobre Psicologia Clínica de Orientação Analítica e Psicanálise.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

“Síndrome do Processo Jurídico...”

Como é do conhecimento geral, a transgressão das normas tidas em conta sob a forma legal, dispõe de sanções previstas para os transgressores, e, os lesados pelos actos dos transgressores dispõem também de direitos e deveres legais. Mas, não é de todo enquadrado nos objectivos que fundamentam estas crónicas divulgar verdades de la Palisse. Será sim (não só, mas também) poder incentivar as liberdades pessoais ao questionamento do totalitarismo das verdades consideradas como básicas e absolutistas.
Para clarificar mecanismos deambulatórios, e até consideravelmente justos por parte do leitor, devo orientar a generalidade do tema para a especificidade que pretendo abordar. Isto é, não se trata aqui de agendas políticas, vagas de corrupção, fiscalização inapropriada e ineficiente, reabilitação deficiente das instituições de punição activa, e entre tantos outros elementos passíveis de consideração (não é que estes elementos não estejam implicados directa e/ou indirectamente no assunto aqui abordado).
Trata-se sim de abordar alguns elementos relacionados com os processos jurídicos que estão implicados no desenvolvimento do que aqui chamo de Síndrome do Processo Jurídico. Ou seja, abordar tipos específicos de crimes e/ou transgressões legais que podem desenvolver, no indivíduo lesado, traumas mentais com génese por exemplo em violações de carácter sexual, violência familiar, homicídio, maus tratos e outros.
Na resolução do trauma mental, com génese em actos passíveis de punição legal tais como os acima mencionados, os lesados numa parte significativa das vezes recorrem ao seu direito legal de acusar os infractores. Não é da minha função fazer julgamentos sobre essa opção válida, mas quando por trás dessa opção estão motivações cuja fundamentação psíquica é distorcida relativamente ao que a realidade dessa opção oferece, então poderemos estar sob a eminência de um possível caso da síndrome que dá nome a esta crónica.
As motivações a que acima me refiro podem ser inconscientes, mais quanto à sua dinâmica funcional do que quanto ao seu conteúdo. Para que se entenda, as motivações podem ser algo do género (com base em crenças distorcidas e irracionais): a resolução traumática é proporcionada pela culpabilização do infractor; culpar o infractor sob a forma legal vai diminuir as consequências negativas do trauma instaurado; se o culpado pelo aparecimento da dor psíquica for punido ela poderá diminuir ou desaparecer; e, entre outras similares.
Quero eu dizer que o indivíduo pode conhecer parte dessa motivação no que respeita à sua materialização consciente em crenças (que o indivíduo desconhece serem irracionais), tais como as já mencionadas. O que o indivíduo pode não conhecer é a tal dinâmica funcional que deu origem a essas crenças e que as mantêm como sendo verdades racionais.
Não é demais recordar que o material inconsciente é pré-lógico, pré--linguístico e pré-racional, e, sendo que a origem das tais crenças é inconsciente, é também normal que as crenças se formem na base de todos os outros materiais inconscientes. É ainda relevante focalizar ainda mais esta questão, isto é, após uma situação traumática (como as já referidas) a busca incessante para minimizar os estragos utiliza todas as armas possíveis, mesmo as que não sejam as mais assertivas. O que é certo é que a assertividade é um tipo de linguagem que não se enquadra no material inconsciente, que é pré-linguístico.
Para não dispersar do tema, vou descurar todos os outros tipos de armas utilizadas pelos indivíduos após situação traumática, e concentrar-me naquela que vos tenho vindo a tentar expor: a criação de material inconsciente pós-situação traumática, que origina crenças irracionais sob a forma de material consciente, e, que em última instância podem levar o indivíduo a desenvolver a Síndrome do Processo Jurídico.
O que é então a Síndrome do Processo Jurídico?
A explicação mais breve, talvez a mais clara e a menos complexa, seria dizer que é o conjunto de características psicopatológicas que um indivíduo desenvolve quando numa situação pós-traumática utiliza a arma inconsciente, para além de outras, que lhe permite criar defesas conscientes, sob a forma de crenças irracionais, para poder combater, suportar ou minimizar os danos causados pelo trauma sofrido. Essa condição leva o indivíduo a ter falsas expectativas quanto aos objectivos do processo jurídico, isto é, basicamente acreditar que através da condenação do infractor a sua dor vai pelo menos diminuir, o que na realidade não acontece. O facto de o lesado esperar, consciente ou inconscientemente, que a condenação do infractor resolve os seus problemas mentais pode levá-lo a um estado de novo choque e/ou trauma agravado, pois chegar a uma nova conclusão de que a dor continua lá, que a condenação em nada aliviou o seu sofrimento, ao contrário do esperado, é o mesmo que dizer que estão então instaladas as condições ideais para o desenvolvimento da referida síndrome.
Claro que a juntar a tudo isto, não pode e nem deve deixar de ser referido que a normal morosidade de quase qualquer processo jurídico é uma inevitável forma de reforçar as características necessárias para o desenvolvimento da síndrome. Ou seja, após um longo período de processo jurídico em que o indivíduo acredita piamente que quando este acabar a sua dor também não se perlongará mais, e que para além disso já sofreu demais com o próprio processo e por causa dele que já não será justo sofrer mais, então o prognóstico torna-se ainda mais grave.
Reparem que de uma forma muito rudimentar estes indivíduos têm a expectativa de resolução de conflitos internos (lidar com o sofrimento causado pela situação traumática) através de soluções externas a si próprios (condenação do infractor através do processo jurídico). Tal como já disse anteriormente não me compete a mim avaliar a eficácia dos objectivos propostos pela lei. Mas compete-me alertar para aspectos peculiares, como este que vos trago.
Os processos jurídicos não resolvem os problemas mentais dos lesados. Pode mesmo acontecer que piorem esses problemas mentais, se não forem tomadas medidas necessariamente adequadas à idiossincrasia dos casos.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 27/09/2005

“Sexo e ciúme...”

Estamos numa altura do ano na qual uma parte significativa da população portuguesa aproveita para passar férias, sendo que dessa parte significativa a maioria opta por destinos que envolvem a componente vital água, mais especificamente as designadas praias.
Para além de toda a dinâmica social, de recreio, da procura de lugares com propensão à diminuição da temperatura corporal (isto é, a procura da água para combater o calor externo, próprio do Verão) e de tantos outros factores motivacionais, existe também um interessante regresso às origens de pós-concepção e pré-nascimento (mas isso é outra questão cuja abordagem poderá ser focada noutra crónica, e, para que esta não deambule num tema que não é o seu, por agora não a alargo mais).
Este é um tema polémico que se destina principalmente a esclarecer alguns entraves relacionais ao nível do casal. Quero eu dizer, problemáticas conjugais cuja origem primária se situa na não compreensão da inevitabilidade da existência das pulsões sexuais e de tudo o que a sua existência pode envolver. Por outras palavras, há casais que têm problemas relacionais motivados pela não compreensão e consequente não aceitação de uma das componentes básicas do ser humano.
Obviamente que a complexidade do tema e a vastidão implicada no mesmo pode originar interpretações inadequadas das generalizações acima descritas, que por si só são algo perigosas. Para evitar correr riscos dessa índole nada melhor que exemplificar com casos reais, isto é, deixar o geral em prol da especificidade.
Um casal heterossexual, cuja mulher tinha muitos ciúmes do marido, fazia questão de dar aso à sua conjuntura obsessiva constituída pela possibilidade de ela não ser a única mulher do seu cônjuge, pelo medo de perder o marido, pela sua insegurança em não ser suficientemente boa (e, tantas outras). Para isso e por causa disso, necessitava da constante e permanente confirmação de que as suas obsessões não tinham razão de ser, tornando essa confirmação em “rituais compulsivos de perseguição” ao seu parceiro. Numa outra linguagem, para esta mulher se por exemplo o seu parceiro olhasse para outra mulher, independentemente da forma ou do porquê, isso era o mesmo que ele lhe dizer que não a amava, e/ou ele a traía, e/ou ela não era suficientemente boa para ele.
O que é certo é que este homem (heterossexual), tal como qualquer outro, tinha a tendência natural de olhar para o sexo oposto (já para não falar da tendência natural para olhar para outros seres humanos independentemente do sexo). O que este homem tinha de diferente de tantos outros é que a sua tendência natural de olhar para o sexo oposto estava pseudo-constrangida pela postura compulsiva da sua mulher, que lhe ditava para fazer o contrário à sua tendência natural. O que aconteceu, na verdade foi uma confirmação involuntária e ao mesmo tempo natural das obsessões infundadas da mulher. Ou seja, este marido não fazia nada de errado sendo que é natural olhar para outras mulheres, não significando isso que ele a traía, e/ou que ela não era suficientemente boa e assim sucessivamente. Apesar disso o que ela interpretava era a confirmação da razão de ser das suas obsessões (tecnicamente, um viés confirmatório) e não a tendência natural do marido (“olhar para o sexo oposto”) que já permitira anteriormente contribuir para juntá-los e ainda contribuía para os manter. Esta mulher tinha medo dessa tendência natural contribuir para que o marido se juntasse também com outra mulher.
Existem aqui factores que vou descurar tais como as consequências catastróficas da vida diária deste casal, e, da vida diária de cada um dos elementos em particular. Apesar disso devo ainda referenciar que as obsessões desta mulher aumentavam significativamente na ausência do marido, e, quando este voltava por muito fiel que ele fosse para ela isso era algo irreal. Já para não falar ainda do efeito contraproducente em relação aos “objectivos” da mulher referidos nos conteúdos obsessivos, isto é, este marido inconscientemente encarou o tal constrangimento como um factor de propensão para “olhar para as outras mulheres”, o que ainda tornou a situação mais complicada.
Voltando agora ao início e às praias, imaginem este casal na praia em que vocês elegeram para as vossas férias... Talvez para este casal essa praia não tenha propriamente o significado que por norma se atribui às férias e à quebra da rotina anual.
É ainda necessário realçar que no caso acima referido, independentemente de tantas outras problemáticas que pudessem existir e mesmo da génese do conteúdo obsessivo da mulher, este casal tinha um funcionamento deficitário e mantinha esse mesmo tipo de funcionamento principalmente devido a uma questão que se tornou psicopatológica na mulher enquanto ser individual. O que é facto é que a sua psicopatologia acabou por contagiar o casal e consequentemente também o marido enquanto indivíduo.
Acima referi que se ia tratar de um assunto relacionado com a problemática conjugal devido à não compreensão da inevitabilidade da existência das pulsões sexuais e da consequente não aceitação dessa condição básica no ser humano, mas dizê-lo apenas dessa forma não é talvez o mais assertivo. É imprescindível acrescentar que por vezes existem obstáculos que não dão permissão à possibilidade compreensiva. Ou seja, podem existir (como no exemplo referido) componentes psicopatológicos impeditivos para que a simples compreensão possa ser suficiente para resolver o problema. “Basta” que para isso haja uma conjuntura de moral aprendida que não seja compatível com a compreensão de “toda” a dimensão das pulsões sexuais, do próprio ou dos outros. Isso significa que a esse indivíduo pode ter sido ensinado por exemplo a negar ou a associar a perversidade às pulsões sexuais inevitáveis. Isso pode ainda significar uma não auto e/ou hetero compreensão e aceitação, como ser humano na sua “plenitude”.
O importante é que, independentemente da dimensão moral aprendida e de toda a conjuntura natural, o casal e o indivíduo em particular tenham um funcionamento adequado e não problemático, perturbado, psicopatológico. Ou seja, é quase impossível existir alguém sem conflitos internos, e é até normal eles existirem, mas torna-se necessário averiguar se esses mesmos conflitos permitem um funcionamento dito normal ou se pelo contrário tornam o funcionamento significativamente deficiente nas mais diversas áreas de vida ou em pelo menos algumas das mais importantes.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 31/08/2005

“Encarregado de Educação Menor - Inversão de Papeis?”

É supostamente certo e sabido que a escolaridade (“obrigatória” em Portugal até 9.º ano de escolaridade ou 16 anos de idade) é uma das componentes, do complexo e vasto rol educativo, cuja importância real e relativa se pode considerar fundamental. Da anterior afirmação, poucos serão os que a contestem, pelo menos no que respeita à sua essência. Certo ou errado!?
O que certamente importa são aqueles que se enquadram no grupo dos poucos que a contestam, e que não a contestam de uma forma qualquer e insignificante. Quero eu dizer que existem pessoas que por exemplo não consideram fundamental para a educação dos seus filhos a componente escolar.
Vejamos um exemplo resumido e ilustrativo retirado das sessões de psicoterapia de um paciente seguido por mim. Esta pessoa quando tinha quinze anos de idade foi literalmente obrigada pelo seu pai a abandonar os seus estudos, sendo ainda, para além disso, também obrigada a trabalhar. Apesar do seu sucesso escolar e da sua vontade de continuar o seu percurso escolar, viu-se na condição daquilo que na língua portuguesa se pode designar por escravatura, já que todo o seu dinheiro, fruto do seu trabalho física e psiquicamente pesado (e ilegal), era retido pelo seu pai. O indivíduo em causa descontente com esta situação indesejada, resolveu pedir ajuda às autoridades competentes, que cumpriram o seu papel, permitindo-lhe voltar para a escola (este processo de pedido de ajuda envolveu grandes dificuldades).
Claro que esta história não fica por aqui, pois apesar de ter concluído o 9.º ano, este indivíduo viu-se novamente obrigado a abandonar a escola por falta de meios de sobrevivência. Isto é, teve que ir outra vez trabalhar, desta vez para poder comer, ter tecto, vestir, e, quem sabe viver.
Não posso deixar de realçar mais uma vez que esta pessoa tinha sucesso escolar, melhor dizendo, tinha boas notas. Ou seja, ou bom aluno e um potencial futuro desalojado da sua vida pelo próprio pai (esta interpretação baseia-se na globalidade de material terapêutico e afins que por razões obvias de espaço e sigilo profissional não estão aqui mencionadas).
Partindo para uma componente mais teórica da questão torna-se imprescindível esclarecer que, independentemente do conjunto motivacional que levou à acção por parte do progenitor acima referido, não se trata de uma tentativa de responsabilizar o filho de forma inadequada. Quando muito a acção resulta numa responsabilização forçada e na consequente inversão de papeis? Não. O papel de pai (encarregado de educação) foi desempenhado pelo filho (educando), mas o papel do filho (educando) continuou a ser desempenhado pela mesma pessoa. Ser filho e ser pai ao mesmo tempo é algo perfeitamente normal, ou seja um indivíduo é filho do seu pai e esse indivíduo tem depois os seus filhos. Mas ser pai de si próprio, e filho de si também, na mesma pessoa... (Con)fusão de papeis...
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 02/08/2005

“Nojo e luto...”

Quando existem motivos suficientemente fortes para provocar o nojo, infelizmente nem sempre esses mesmos motivos são desencadeadores do processo de luto normal, luto este necessário para que toda a conjuntura psíquica desagradável seja realmente ultrapassada de forma considerada normal (entenda-se por nojo ou luto toda a dinâmica global desagradável ,que incluí tristeza e/ou mágoa e/ou pesar e/ou desgosto e/ou repugnância e/ou entre outros, devido à morte ou perda de um ente querido).
Assim, um indivíduo pode sentir nojo ou luto, mas não entrar num processo de luto dito normal. O processo de luto normal pode ser caracterizado por quatro etapas interrelacionadas e graduais, que normalmente têm a seguinte ordem temporal: choque e negação, protesto e dor, desespero, e, aceitação. A duração de um luto normal é altamente variável consoante todo o conjunto de parâmetros existentes, no entanto por norma não ultrapassa os 12 meses. As características sintomáticas mais comuns são algo semelhantes a algumas da depressão patológica (tristeza, choro fácil, perda de peso, falta de apetite, insónia, etc.), mas esses sintomas são considerados normais devido à origem (morte ou perda de um ente querido).
O que normalmente difere um luto patológico de um normal é que no patológico, para além de tudo o que se considera comum acontecer (descrito sucintamente acima), o indivíduo pode apresentar: tendência para se culpabilizar acerca das causas da morte ou da perda do ente querido e/ou pelo que poderia ter sido feito para evitar o sucedido; ideação de morte exclusivamente de substituição e/ou de solidariedade, isto é, querer substituir o ente que morreu por ele próprio e/ou querer morrer com ele; lentificação psicomotora persistente; desvalorização da morte e/ou perda; perda significativa da funcionalidade de forma persistente e prolongada nos diversos contextos de vida; alucinações relativas à voz ou imagem do ente que morreu ou que se perdeu.
Uma outra característica de qualquer tipo de luto é a imutabilidade do sucedido, e a consequente inevitabilidade do sofrimento causado. A forma de lidar com o sofrimento torna-se assim o foco principal de toda a conjuntura que está envolvida no luto e no seu respectivo processo. Ou seja, o luto não pode ser evitado e tem que ser necessariamente vivenciado, o importante é conseguir, na medida do possível, viver o sofrimento causado da forma mais assertiva e adequada possível. Isto é, por exemplo, negar aquando do choque, protestar a perda e/ou morte, viver a dor inevitável, desesperar, e, aceitar a condição imposta pela vida: a morte e/ou perda. Pode ser caminho para o luto patológico, por exemplo, persistir na negação do sucedido, tentar evitar e/ou camuflar e/ou negar o sofrimento, tentar não desesperar se assim o tem que ser, não aceitar a seu tempo o que se passou.É ainda de realçar que a vivência idiossincrática de cada luto específico, pressupõe especificidades que são importantes considerar, às vezes mais do que as generalidades acima descritas. Existem muitas pessoas que consideram precisar de ajuda profissional mesmo para ultrapassar um processo de luto dito normal, e outras, que se poderiam considerar em luto dito patológico não necessitariam dessa ajuda. Claro que por norma e salvo raras excepções, um luto patológico requer ajuda profissional, pois as consequências da não ajuda são quase sempre nefastas para a vida do indivíduo em processo de luto e para os que mais próximo dele se situam. Basta ter em conta exemplos reais como: o indivíduo que persiste na fixação que a morte do ente querido foi culpa sua e que acha que deve morrer também, nem que para isso tenha que se matar; ou naquele outro que depois da morte de um ente querido nunca mais foi capaz de trabalhar, isto 17 meses depois; ou ainda aquele que realiza as suas actividades diárias como se o ente querido ainda estivesse vivo, quando este já faleceu à mais de 10 anos; e tantos outros. De qualquer forma a ajuda profissional, quando bem orientada, é normalmente bastante eficaz e produtiva neste tipo de casos.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 19/07/2005

“Fogo posto...”

Numa altura do ano em que os fogos florestais fazem parte da nossa vida diária, será conveniente alertar para uma perspectiva específica da realidade global que se apresenta: o fogo posto pelo prazer de ver arder.
Ou seja, não se trata de fazer uma abordagem generalizada dos fogos que se iniciam pela mão humana de forma intencional, mas sim remeter a abordagem ao que se designa por piromania. Deste modo todas as outras formas de fogo posto que não as incluídas nesta perturbação não serão abordadas.
As pessoas com perturbação piromaníaca têm um comportamento incendiário de forma intencional e deliberada (e, muitas vezes com grau elevado de premeditação), ocorrendo várias vezes ao longo da vida. São pessoas que antes da acção comportamental incendiária experienciam um aumento significativo da tensão, e que, normalmente se sentem aliviados (libertos de tensão) após consumado o acto inicial (pôr fogo). São indivíduos que por norma sentem fascínio, interesse, curiosidade e/ou atracção pelo fogo em si e pelos contextos em que ele ocorre (para estas pessoas ver um fogo pode ser uma actividade muito prazerosa).
O que realmente distingue estes incendiários com patologia piromaníaca dos outros incendiários intencionais (patológicos ou não) é que os indivíduos com piromania não ateiam os incêndios com objectivos lucrativos (financeiros ou outros), nem para marcar posições políticas ou sociais, nem para demonstrarem a sua ira ou vingança, nem para melhorar as suas condições de vida, nem mesmo como consequência de questões alucinatórias ou ideias delirantes (e outros). Na piromania os incêndios são ateados pelo prazer de ver arder, pelo prazer do fogo em si, pelo gosto em ver o poder destrutivo causado em propriedades e florestas, pelo prazer dos resultados finais...
Uma outra característica importante destas pessoas refere-se à sua incapacidade avaliativa sobre as consequências dos actos cometidos por si numa perspectiva de avaliação que se considera a normal. Ou seja, a sua avaliação das consequências tem uma dimensão exclusivista (no sentido do prazer dos resultados obtidos pela consumação do fogo posto), que não lhe permite olhar para a realidade de outra forma que não essa, a sua perspectiva reducionista e distorcida da realidade.
Apesar de não existirem dados conclusivos quanto a características etárias da patologia sabe-se que quando ela existe na adolescência está normalmente associada a outras patologias como as perturbações do comportamento, as perturbações de hiperactividade com défice de atenção e as perturbações da adaptação. Isto é, a piromania pode ver-se como perturbação pseudo-isolada, como perturbação associada ou como forma sintomatológica.
Felizmente para nós este tipo de patologia pode-se considerar rara, mas mesmo assumir isso é inconclusivo, pois a informação nesse sentido não me parece de todo suficiente. Por exemplo, ao olhar para o panorama nacional de incêndios e para a investigação muitas vezes inconclusiva das origens dos incêndios, a possibilidade de legitimar um número de incendiários piromaníacos aproximado à realidade esvais-se.
Assim, parece-me obvio que, independentemente da tipologia da prevenção existente na questão dos incêndios, não se conhece a realidade de forma suficiente para que se possa produzir um sistema de prevenção mais eficaz, pelo menos no que se refere à prevenção da percentagem de fogo posto. Ou seja, se não se conhece sequer quem incendeia (ou mesmo se é alguém que incendeia ou se são causas naturais), não se pode determinar o perfil do incendiário, e se este perfil não pode ser traçado então não se pode objectivar a realidade de forma a perceber por exemplo qual a percentagem de incendiários piromaníacos e qual a sua significância. Ao desconhecer-se este tipo de premissas, a prevenção enquanto medida eficaz de combate aos incêndios intencionais pode estar seriamente comprometida ao fracasso.
Posto isto, apresentar medidas no sentido do melhoramento das equipas de investigação científica poderia contribuir para inverter o ciclo anual dos incêndios (equipas multidisciplinares, formação e equipamento pode ser um investimento que poderia poupar muito aos cofres do estado a longo prazo). E juntando o útil ao agradável essas equipas de investigação poderiam dar um contributo significativo para a investigação psicológica da piromania, de outras formas patológicas associadas a comportamentos incendiários e mesmo na abordagem de perfis psicológicos, e, entre tantos outros planos de trabalho de utilidade pública.
Seria muito útil verificar a importância (significância) do grupo de incendiários piromaníacos para possivelmente identificar e controlar de forma eficiente o grupo referido através de um conhecimento mais próximo da realidade dos números e das características da sua patologia. Só se pode contribuir para a investigação a este nível se se tiver acesso aos indivíduos que têm esta patologia, e para isso é necessário identificá-los...
Esquecendo agora um pouco aqueles fogos cuja origem se desconhece por completo ou parcialmente... De todos os incendiários intencionais acusados, julgados e culpados quantos foram submetidos a uma avaliação psicológica no sentido acima referido? Qual a importância real da avaliação psicológica para determinação da imputabilidade ou inimputabilidade do indivíduo julgado em tribunal?
Estas e outras questões são fruto do ainda ténue e aligeirado peso real da Psicologia e Psiquiatria Forenses quer no que respeita à decisão em tribunal, quer no que respeita às dimensões cientifica e de investigação. Por exemplo no que respeita à decisão, se ela tivesse em conta o real valor da avaliação psicológica poderia ser decidido, no caso de piromania, o acompanhamento adequado à patologia e não só a pura e simples prisão, que por si só não vai fazer com que o indivíduo deixe de ter a patologia, como também não a vai amenizar. O mais real será esse indivíduo voltar a dar aso ao seu prazer pelo fogo quando for libertado... E o ciclo (piromaníaco) continua...
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 28/06/2005

“Preciso de ajuda...”

O processo de autodeterminação da necessidade inultrapassável, incontornável e inadiável do pedido de ajuda psicológica é muitas vezes um processo tão ou mais complexo que o próprio processo terapêutico daí decorrente. É de realçar que não sendo fundamental recorrer à ajuda psicológica profissional nalguns casos, esta se demonstra preciosa na resolução das problemáticas existentes nesses casos de aparente não necessidade de ajuda, e, existem casos em que não existe problema algum e que as pessoas recorrem à ajuda no sentido de melhorar a sua vida e/ou de progredirem sobre si mesmas, para si próprias.
Para muitas pessoas chegar à conclusão que se tem um problema não é tarefa fácil, e quando esse problema é um problema que não se resolve por si, que não passa com o tempo (muito pelo contrário tem tendência ao agravamento), que sozinhos não o solucionam, que as pessoas que os rodeiam também elas não podem ou não conseguem ajudar, é, variadas vezes um problema com um peso tão importante quanto o problema em si, e, com uma dificuldade de reconhecimento acrescida (pela gravidade do problema). Pode até parecer algo paradoxal, mas a gravidade do problema afecta (em grau que depende da especificidade do problema e da sua interpretação) a capacidade de discernimento sobre o próprio problema.
Mesmo quando a dificuldade não passa pelo reconhecimento da problemática existente, a questão do passo inicial (pedir ajuda psicológica profissional) está muitas vezes inibida por um conjunto diverso de factores, tais como a auto e hetero imagem social e tudo o que lhe está implicado implícita e explicitamente, a questão financeira da linha profissional privada, a cada vez mais extensa lista de espera dos serviços públicos de psicologia e psiquiatria e entre muitos outros.
Um principal de entre os muitos outros não referidos acima, é o facto de que certas patologias cuja sintomatologia contém uma distorção acentuada da realidade não permitirem ao indivíduo ter a capacidade de formular processos de forma assertiva e eficaz que lhes permitam tomar as decisões mais adequadas perante as situações que vão ocorrendo. Assim, a sua dificuldade decorrente do problema pode agravar o próprio problema inicial de diversas formas, uma delas é a de não ter a capacidade para perceber por si (ou mesmo pela motivação de outros) que precisam de ajuda ou que para a obterem têm que tomar essa decisão no sentido de a concretizarem em acção. Recorrem muitas vezes a discursos tipificados (e/ou discursos internos de dissuasão da acção comprometedora) como por exemplo que não vale a pena, que ninguém os consegue ajudar, que não existe ajuda possível, ou ainda, que são capazes de resolver tudo sozinhos, que é melhor deixar andar (do que ser exposto ao sofrimento de base da problemática quando confrontados com a problemática em si...), que passará com o tempo, que tudo se resolverá com uma fórmula mágica (como por exemplo com exclusiva terapia farmacológica)...
É ainda necessário focar que a responsabilidade do pedido de ajuda passa não só pelo próprio indivíduo em questão, mas também pelos elementos (pessoas) circundantes a esse indivíduo, que têm uma importância relativa e muitas vezes determinante quer para essa decisão do pedido de ajuda, quer para a existência e resolução da problemática. Deve então ser tida em conta a co-responsabilidade das pessoas que fazem parte da vida do indivíduo que precisa de ajuda. Obviamente que a maior responsabilidade do pedido será conveniente que seja do indivíduo em questão, já que por exemplo o terapeuta dificilmente conseguirá ajudar alguém que coloca oposições severas a ser ajudado.
A questão que se coloca é: “Preciso de ajuda psicológica profissional?”. Apesar da simplicidade aparente da pergunta, quando a fazemos a nós próprios a complexidade aumenta. Pior será impedirmo-nos de ter a autoliberdade de a fazermos quando ela se torna adequada (“Então e quando é que ela se torna adequada?”). No mínimo será imprescindível perceber que até fazermos a primeira questão, outras perguntas vieram antes dessa, e, que se nos questionamos, normalmente procuramos respostas. Deverá ser essencial não apenas questionar, não apenas responder, mas também tornar em acção aquilo que muitas vezes fica apenas em palavras ou no pensamento.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 07/06/2005

“Na ausência do agente punidor...”

Uma das questões estudadas na ciência psicologia, segundo a perspectiva comportamentalista, é a punição. Relativamente a este aspecto (objecto de estudo, e, mais tarde estratégia de intervenção para diminuição da frequência, intensidade e duração de um comportamento indesejado) pode dizer-se que as evidências experimentais de laboratório demonstram que é realmente eficaz. Isto é, por exemplo se se associar a um comportamento não desejado um estímulo aversivo, esse comportamento terá tendência para diminuir na sua frequência, intensidade e duração.
Materializando este exemplo descrito teoricamente para uma componente mais prática, é o mesmo que dizer, metaforizando, que quando alguém faz algo de “errado”, punir essa pessoa é uma estratégia eficaz para que essa pessoa não o volte a fazer. De facto não se pode retirar a esta estratégia a eficácia “merecida”, mas deve ser questionada na sua assertividade enquanto resposta e enquanto estratégia operacional, e, especialmente quanto à sua real eficácia.
Quer isto dizer que se for analisada a estratégia “punição” nos termos acima referidos, ela parece ser “o remédio para todos os males”, mas se for visualizada duma perspectiva mais aprofundada, ter-se-á de imediato a noção de que a realidade que se apresenta é outra. Ou seja, para além da demonstração empírica laboratorial, a demonstração empírica da realidade em si revela que as principais críticas, já à muito fundamentadas, a esta estratégia são o mais próximo da verdade: a punição não funciona na ausência do agente punidor, isto é, só funciona na sua presença física.
Mesmo esta critica é facilmente criticável, quando se pensa nas tais experiências laboratoriais, mas há diversos exemplos práticos e do conhecimento de todos que a exemplificam de forma clara: é o caso do tão discutido “código da estrada” e da tão polémica e ambígua forma de actuar de alguns pais quando se questionam de devem ou não “bater” nos filhos como parte integrante da educação.
Relativamente ao “código da estrada”, parece-me ser um exemplo que pode servir de metáfora e/ou analogia para outros tantos exemplos, no sentido em que o seu carácter cada vez mais punitivo do seu não cumprimento, continua apenas a funcionar para que os utilizadores das vias públicas o queiram cumprir quando se vêem confrontados com os agentes da autoridade com competências punitivas. As pessoas não usam cinto de segurança para esse efeito de protecção, mas sim porque é obrigatório, e, se é obrigatório o seu não cumprimento dá coima. As pessoas não andam devagar ou a velocidades que lhes permitem ter segurança mínima por esse motivo, andam a velocidades excessivas e reduzem para a velocidade limite quando sabem que se aproximam de um radar. Obviamente que estas pessoas não são todas, mas não serão a maior parte? O que está em causa é que as pessoas em vez de zelarem pelos seus interesses e seguridade estão fixadas no medo das represálias e nas suas consequências. Não estão tão importadas se têm um acidente e se magoam (a eles e aos outros), estão preocupadas com as coimas e com o facto de serem ou não “apanhados”...
Sobre o segundo exemplo relativo à componente educativa (dos filhos), a explicação deixada ao “código da estrada” é esclarecedora, mas contudo insuficiente devido à própria metaforização. Assim, convém ainda ter em conta alguns pontos fundamentais: existem alternativas (realmente eficazes) à punição e/ou métodos punitivos adequados à complexidade da situação específica quando utilizados em complementaridade com outras medidas de redução comportamental; nem todas as formas de punição são de conteúdo agressivo; quando a punição é exercida sob a forma de agressividade física e/ou psíquica (“bater”, “agressividade verbal”...) o efeito gerado pode ser catastrófico, desde o desequilíbrio emocional, o medo, a auto e hetero agressividade, até mesmo ao efeito contrário ao desejado pelo punidor, entre outros; a punição só funciona realmente na presença do punidor, na ausência deste o elemento punido poderá ter o mesmo comportamento pelo qual foi punido; com a utilização da punição como estratégia para a diminuição de um comportamento, o elemento punidor pode ver esse comportamento por si indesejado diminuir (o comportamento do elemento punido) não porque o elemento punido compreende as motivações auto e hetero necessárias para não o efectuar, mas sim pelo medo da punição e de tudo o que esta contém; (...).
Assim, responder a comportamentos que consideramos “indesejados” de forma punitiva não resolve a situação comportamental na sua plenitude, se é que a resolve de qualquer forma. A questão prende-se com facto do que realmente queremos que aconteça ou que não aconteça, e nisso temos que nos questionar muito bem a nós próprios, porque senão teremos que continuar a arcar com as consequências dos nossos comportamentos de resposta punitivos. Ou seja, queremos conduzir em segurança ou queremos fugir às multas? Queremos que os nossos filhos conduzam em segurança ou queremos que eles fujam às multas?
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 24/05/2005

“O meu amigo silêncio.”

Certamente que o leitor se poderá questionar sobre a generosidade metafórica, de conteúdo controverso e/ou irónico em que se prima este título. De facto, a ausência de conteúdo “sonoro” pode ser benéfica nas situações mais variadas, mas não é de música literal que aqui se pretende abordar. Trata-se em vez disso de relações interpessoais, as relações entre as pessoas, a ausência delas e aquelas cuja comunicação tem características de não a ter, ou, de a ter de forma distorcida.
Como o tema proposto para reflexão é vastíssimo, será considerado apenas numa perspectiva mais específica de abordagem, aquela a que o título faz referencia subliminar: a ausência da relação esperada. Esperada no sentido de imposição social ou até de imposição biológica? (E) Ou expectativa do indivíduo específico? Vivência da relação que não existe de forma idiossincrática?
O conjunto de exemplos que se tornam casos clínicos é esclarecedor desta temática. São desde os casos em que uma das figuras vinculativas primárias ou não existem ou estão ausentes, até aos casos em que o indivíduo espera encontrar uma nova figura à qual se vincular e não a consegue “achar” pelos mais diversos motivos. Por outras palavras desde a ausência de um pai, até à ausência de uma namorada.
As questões que se levantam não dizem respeito aos casos que, embora esta ausência da relação esperada exista, os indivíduos a vivenciam de forma adequada, isto é, de forma assertiva a tal ponto que essa situação por si só não origina qualquer forma patológica. Mas sim, aqueles que ou não sabem lidar com essa situação, e/ou não a reconhecem como problemática (se ela assim o for), e/ou lidam com ela de forma deficiente/insuficiente.
É também, de certa forma, comum que neste tipo de ausências se desencadeiem formas patológicas de lidar com a situação já que ela por si só pode ser bastante problemática, o que não implica que exista (ou não) também alguma pré-disposição para a forma ineficaz de lidar com a situação. Até porque, existem formas de lidar com a situação promotoras de resolução das problemáticas e de tudo o que as envolve, e pessoas com características próprias que lhes permitem à prior implementar essas medidas promotoras sem recorrer por exemplo à ajuda psicológica.
Ou seja, a situação tem peso variável de influência para cada indivíduo e cada indivíduo tem características próprias que lhe permitem lidar com essa situação de forma muito singular. O indivíduo é influenciado pela situação e a situação revela contornos promovidos pela influência do indivíduo.
Voltando agora à questão de fundo, o indivíduo perante a ausência relacional esperada, seja na sua forma patológica ou normal envolve sempre um nível de sofrimento significativo. A gestão que o indivíduo faz desse sofrimento, a direcção e os sentidos à qual ele o conduz (exemplo: luta vs. fuga/evitamento), são factores determinantes na extensão ou encurtamento temporal desse sofrimento. Mais do que isso são factores dos quais pode depender se esse sofrimento tem tendência a ser minimizado ou se pelo contrário tende a ficar cada vez maior, até ao ponto do insuportável ou até ao ponto de auto-ruptura com a vida.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 05/04/2005
Será obviamente de grande dificuldade expor por parâmetros claros este tema, já que a sua dimensão mais correcta de análise não envolve tramites de linearidade. Por isso, será também de esperar que, aos leitores que se identifiquem com o tema, surja uma certa dúvida razoável. Também por isso foi já referida a idiossincrasia ou forma singular e única que cada um apresenta para cada situação específica. Ainda assim, é possível delimitar postulados de generalização não futurológica, mas sim baseada em dados reais que já aconteceram, e, dirigi-los no sentido do que poderá vir a acontecer.
Voltando a questão um pouco mais para a sua vertente prática, e, pegando no exemplo já referido anteriormente da ausência de um pai, na perspectiva de análise da forma patológica de lidar com esta situação, o indivíduo que a vivência demonstra muitas vezes características depressivas provenientes da ausência afectiva esperada e desejada. Essas características, que na sua forma sintomatológica relativa dependem também da fase da vida do indivíduo em que a situação acontece e/ou se inicia, tornam por norma essa pessoa mais vulnerável e fragilizada perante outras situações similares como será o outro exemplo anteriormente referido, a ausência de uma namorada.
Ainda por outras palavras, o indivíduo poderá ter tendência a desenvolver uma forma depressiva de lidar com a situação o que não lhe permitirá visualizar a situação de uma forma aproximada do que a realidade representa e apresenta. Até porque uma das características da depressão é a da distorção da realidade, normalmente vivenciada por exemplo apenas na sua forma negativa. Isso faz com que o indivíduo olhe para todas as situações da mesma forma, a negativa, a irreal por absolutismo visual. Assim, quando esse indivíduo se depara com situações similares de ausência relacional, terá tendência para se auto-confirmar na sua perspectiva negativa, de forma infundada. Essa auto-confirmação faz com que essa pessoa viva a realidade com base no seu próprio ciclo vicioso negativo, constantemente confirmado e reconfirmado por si próprio: o ciclo vicioso da depressão.
É ainda necessário referenciar que a ausência da relação esperada é apenas um factor que poderá ser desencadeante deste tipo de patologia, pois outros serão necessários para que ela venha ao de cima, e esta poderá não ser a única a ser desencadeada, mas será certamente a mais provável e mesmo a patologia base de outras que possam a ela estar associadas, segundo este factor relacional.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 26/04/2005

“Nascer por favor, nascer por amor – expectativas parentais.”

No passado dia 8 deste mês do corrente ano, li um artigo no “Jornal de Notícias” que me causou um efeito de alguma consternação. Na Grã-Bretanha, põe-se em hipótese, numa discussão de tramites legais, um casal conceber um filho (uma pessoa) com a intencionalidade deliberada e específica de este vindouro fornecer o poder curativo para um filho deste casal que tem uma doença genética.
A minha preocupação não tem um caracter ético na sua plenitude, tem sim sentido quando se visiona as possíveis consequências idiossincráticas de um indivíduo humano ainda inexistente. Ou seja, estes pais não desejam o filho pelo filho, mas sim o filho pelo outro. E, isso, pode ser pré-traumático, na perspectiva em que esta futura pessoa será concebida mediante um planeamento sim, mas um planeamento de utilização genética, e não um planeamento de acção afectiva, característica essência da boa saúde mental/desenvolvimental da relação pais/filho e filho/mundo.
É hoje do conhecimento científico que toda a globalidade da preexistência influencia de forma significativa, senão determinante, a futura existência pessoal. Um dos aspectos a ter em consideração como factores de maior peso directo nessa globalidade são as expectativas parentais e as suas motivações criadoras, quer as conscientes, quer as omissas.
Por outro lado será facilmente compreensível que estes pais queiram salvar o filho que conhecem e que de certa forma menosprezem as consequências negativas que poderão surgir para o filho que ainda não vêem. Ao vindouro, é ainda compreensível que o visualizem supervalorizando os traços de positividade provenientes da imagem de necessidade curativa, e, vejam nesse planeamento e futura acção intencional, “apenas” aquilo que possivelmente poderão pensar ser os factores de positividade esperada nesse e para esse filho: “Ele nasceu para a salvação do irmão e isso será um factor de felicidade para ele...(?)”. Certamente não posso pensar por estas pessoas, mas poderão elas pensar pelas que ainda não existem?
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 22/03/2005

“A negligência do negligenciado...”

Poucos serão os que ainda não ouviram o velho ditado popular “Filho de peixe, sabe nadar”. Alvo de críticas e contestações dos menos crentes e mais cépticos, este ditado como tantos outros, pode e deve ser analisado, no sentido do seu valor real.
Tem tanto de cientifico como de popular?
Por exemplo, quando se elabora uma transposição do significado latente para as flexíveis normas da ciência Psicologia, encontra-se aqui uma chave interpretativa das mais diversas realidades. Ou seja, descobre-se que o que por outras palavras se diz em Psicologia, é o mesmo no que este ditado mais se revela: “Os filhos são sempre sintoma dos pais (e/ou das figuras vinculativas que os representam, no caso da inexistência destes)”.
Na prática o que isto quer dizer, não é que filho de ladrão vai seguir o mesmo caminho, não é que filho de pobre não vai ter bens materiais, não é uma questão que se possa analisar em correlações directas de causa/efeito. É antes necessário ter em conta todo um conjunto de variáveis que modificam essa correlação directa, transformando-a apenas em linhas de orientação para o desconhecido vindouro. Assim, dizer pura e simplesmente que um pai que fora enquanto filho maltratado pelos pais vai também ele maltratar os seus filhos, está longe do que pode ser considerado linear. Mas, dizer-se que os filhos, desse pai maltratado enquanto criança, são também produto sintomatológico dessa negligência anterior, é uma condição indispensável para a correcta análise da contribuição familiar para a vida dessas pessoas, filhos.
Numa perspectiva de análise familiar, o que se quer aqui deixar assente, é que todo o complexo ambiente familiar proporcionado aos filhos, tem uma contribuição, cujo o peso é enorme, para toda a componente pessoal dos filhos. Isto é, existem claramente psicopatologias cuja etiologia é significativamente relacionada com as condições familiares, e condições específicas de cada um desses elementos familiares. Independentemente de outras causas de origem genética, orgânica, cultural, metabólica, e tantas outras, esta, a de origem relacional familiar, está muitas das vezes por trás do aparecimento de problemáticas nos filhos, aos mais diversos níveis.
Após um diagnóstico diferencial detalhado e adequado a cada problemática específica, ou seja, depois de se saber que a problemática tem origem principalmente ao nível da dinâmica da relação familiar, a abordagem mais correcta a aplicar será uma intervenção ao nível familiar, e/ou uma psicoterapia familiar. Mas, esta não deve ser declaradamente exclusiva, já que essa problemática vem representada nos filhos, e estes devem ser, dependentemente do caso, foco das principais intervenções. Apesar dessa problemática ser representativa da problemática que os próprios pais apresentam “em casa”.
É então fulcral ter em conta que existem muitas das vezes pais que, sem se aperceberem e sem terem uma intenção conscienciosa ou sequer uma intenção, (re)produzem nos seus filhos problemáticas que também neles foram mal resolvidas ou não foram resolvidas sequer. Mais do que isso, não se apercebem delas em si mesmos, e apenas vêem os problemas nos seus descendentes. Apresentam-nos como origem, causa e consequência, de todos os conflitos existentes. Querem resolver os seus problemas através da resolução dos problemas dos seus filhos. Resolver os problemas dos filhos é então resolver os problemas dos pais? Quem tem então problemas?
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 08/03/2005

“Ouvir os nossos filhos...”

À algum tempo atrás, um dos meus pacientes adolescentes, após finalmente ter mencionado os verdadeiros factores que o levaram à tentativa de suicídio, terminou a consulta com um pedido insólito, mas esclarecedor: “Sei que não devia pedir isto, mas podia-me dar um abraço, por favor...”.
Apelando ao afecto não concedido pelos quem mais gostaria de abraçar e de ser abraçado, esta pessoa chora nos meus braços a dor de não ser compreendida, de ela própria não se perceber a si, aos outros e ao mundo que a rodeia. Mais do que isso, e principalmente, revela o investimento deficitário e a atenção também distorcida dos seus mais próximos, quando mais do que nunca precisava “apenas de um abraço”.
Construíram-se laços inadequados e incongruentes com o equilíbrio necessário à exploração saudável do mundo afectivo. Mundo desconhecido, e, difícil de encontrar para o adolescente, quando não se formaram bases preliminares de sustentação emocional, para a tão atribulada descoberta relacional, o encontro consigo perante o outro. Por outras palavras, a adolescência é por si só um período conturbado de descoberta aos mais diversos níveis. Neste, o da descoberta afectiva, será de conveniência que o indivíduo tenha tido a possibilidade de experiênciar, desde o início mais remoto da sua vida, conteúdos equilibrados e assertivos de afecto relacional, para que assim esteja minimamente preparado para o que a vida lhe reservar quando se deparar com os conflitos provenientes dos processos de identificação e autonomia, característicos da adolescência.
De uma forma mais transparente, a descoberta afectiva da adolescência, que aqui se procura abordar, refere-se especificamente ao encontro do “EU” com o real ou imaginário, parceiro amoroso. Certamente, esta questão específica não deve ser alienada do vasto conjunto complexo de factores interdependentes, tais como a sexualidade ou a necessidade de vida em grupo como factor de protecção para o mundo desconhecido e como factor de transposição da vida vinculativa familiar para a vida (pseudo) autónoma.
Dentro da perspectiva integrativa global da realidade adolescentil, esta referência tão específica não deve ser deixada ao acaso, já que nesse sentido os resultados finais poderão ser devastadores, muito para além da adolescência, e em última análise poderão terminar muito antes do fim desta. É apenas um aspecto, a consideração do afecto relacional, mas tem peso suficiente para que a vida do actual adolescente seja diferente na sua vida adulta.
Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria
, 22/02/2005