Bem vindo(a) ao PsicologiAveiro, o blog do ITAPA.
Artigos principalmente sobre Psicologia Clínica de Orientação Analítica e Psicanálise.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

“Literalidade e latência: da verdade unicista à mudança idiossincrática.”


Para além da literalidade e da latência, estão tantas vezes as verdadeiras mensagens, onde a  genuinidade e a veracidade parecem encontrar-se na relação entre o que se expressa e o seu significado para além da sua própria aparência. Isto é, não é numa, nem noutra isoladamente que podemos achar os reais significados, da comunicação intra e extra-psíquica, mas sim na sua inter-relação dinâmica. O trabalho de leitura analítica da vigília deve, apesar de tudo, regular-se pelos mesmos ditames analíticos do trabalho dos conteúdos oníricos: entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente.
Não é propriamente novidade, que o conteúdo manifesto seja também representativo de conteúdos latentes, e, que o significado total/real, [ou pelo menos, proximal da(s) verdade(s)] da intra e/ou extra-expressão psíquica, seja tendencialmente incompleto quando compreendido apenas nessa face que se mostra (superfície) ou na outra que não se vê (profundidade). No entanto, é com alguma cautela, e até delicadeza, que a interpretação das “preciosas verdades intra e/ou externo-relacionais” deve ser feita, já que se a busca pretender encontrar uma espécie de verdade única (“a verdade” e/ou “a interpretação”), então não haverá espaço para a amplificação do conhecimento interpretativo que permite (e tantas vezes possibilita) a existência da mudança (terapia), para em vez disso se assumir uma medíocre cristalização de algo, que por ser dinâmico (à própria imagem do universo mental) não se poderia considerar como digno de real, se imutável.1

  • 1 Ainda assim, poderíamos, e talvez devêssemos, pensar um pouco em ditas entidades em forma de quadros (ou quadrados) patogénicos, onde a fixação parece presidir, quer à formação do próprio estado, quer à manutenção aparentemente repetitiva e imutável do sujeito. Ou seja, como se duma dinâmica estática se tratasse, que é o mesmo que dizer que o estado seria estático pois a única dinâmica apresentada seria a própria repetição de uma dinâmica em particular, repetida vezes sem conta, por vezes até à exaustão, aquilo que por exemplo alguns apelidaram e chamam (também) de “Repetição Relacional Patogénica” [onde o indivíduo vivência as novas situações à imagem das situações antigas (fixação referencial)].

Vejamos um exemplo de associação livre retirado de uma sessão de terapia (com autorização e confidencialidade asseguradas), onde a vigília se parece encontrar com o sonho, e o espaço de libertação (e até de libertinagem “psicótica”) se abriga na segurança da possibilidade de fantasiar o que realmente se fantasia, sabendo que é naquele espaço que se pode ir lá sem lá ficar, permitindo o regresso e a regressão (ou tantas vezes a mera visualização interpretativa) a estados onde, por exemplo, “o indivíduo ainda nem é indivíduo, e o mundo ainda não é mundo, do útero fusional à ausência de sexo”:

  • “(...) Não é, uma qualquer dor que me assola… Não é? São os campos que de arroz se estendem até ao teu rosto, são. Que consolo se aloja na perdiz? Qual esforço, subindo ao encosto de um banco de jardim. Agora fá-lo, ora surpreende o entusiástico reparo que não vi. Quem era aquela janela, sentinela? Dispersão. Pressionarias aquela tecla que jamais ousaria toar-te daquele som. Aberta pela supérfula via do engenho frutífero. Não mais queria tê-la comigo, aquela janela que abrigo. (pausa) Ainda agora comecei as primeiras letras e já me vejo a olhar as palavras, que fogem pela parede e se encontram nas calmas serenatas de horror. O espreguiçadouro de Miornot, era antigo, ansião-lítico, do mesmo tipo que abismo. Quem ousa compreender estas arrogantes palavras? São também os cintilantes brilhos parquíssimos de gralhas? Para quê perder o significado de cobrir o telhado de firmes orlas de cor. Contra-pé delegado para sair caro o sabor. Não digo nada, deste mais tudo que desaparece num seguro milionésimo de calor. Servidos os quadros, parecem vidros de ligação. Permanecem permitidos apenas os que queimam agreste salva. Sejam soltas. Não querem ser mortas. Mas são. (pausa) Aquém destemida sai pelo portão de balancé. Sai pela porta que é entrada do que é. Aflige. Recomenda. Atrai-se para a contro-ladainha. Para se voltar a ver que aquela, era minha.(...)” 

Convém referir que apesar da contextualização de luz exemplificativa, o trecho de sessão acima transcrito apresenta-se intencionalmente desprovido do contexto original, quer da sessão onde emergiu, quer da própria terapia, o que pode levantar com enorme facilidade os reducionismos mais precários sobre o que realmente estaria a ser “dito”. Independentemente disso, a intenção é mostrar com realidade analítica aquilo que dá título a este texto, ou seja, que da literalidade do que é dito e da latência que contém, pode ser expandido o auto-reconhecimento de significado do que normalmente não é dito, nem ao próprio e muito menos ao outro. Por outras palavras, no espaço onde o Eu se permite encontrar com o outro, pode dar-se também um renovado auto-encontro, diferente de um encontro repetido (sob a alçada dos meramente encontros passados). Talvez importe dizer que é, também, nessa livre expressão que tantas vezes os elementos de conteúdos deslocados para objectos invariavelmente insatisfatórios e consequentemente produtores de sinais e sintomas, se recolocam na via da possibilidade (previamente transferencial) do encontro com objectos realmente possibilitantes da satisfação e/ou frustração (satisfatória), aqueles que podem dar caminho ao percurso para a resolução [do(s) conflito(s)], por serem os apropriados (ou por serem pseudo-substitutos sublimantes suficientemente capazes de o serem).
 Claro que é, também muitas vezes, o facto das características dos objectos receptores (apropriados à satisfação e/ou frustração dos conteúdos latentes, por exemplo desejantes) serem inapropriadas para os conteúdos dinâmicos do Super-Eu que tornam o caminho desviado, quer da satisfação, quer da frustração (satisfatória), já que o deslocamento (para objectos diferentes daqueles que podem adequar-se aos conteúdos emergentes) viabiliza mormente acontecimentos sinalético-sintomáticos que podem ir, por exemplo, desde a fixação obsessiva no objecto deslocado até à psicose paranoide. Ambos exemplos, de apresentação defensiva e sinalética da depressão subjacente à (im)possibilidade do encontro amoroso interno e do posterior encontro amoroso (satisfatório e/ou frustrado) com objectos apropriados e reais do mundo externo: a liberdade para o Eu intra-integrado e para a saudável relação com o outro (no e do mundo extra-psíquico); ou, a liberdade para a auto-aceitação intra-integrada do Eu e libertadora da aceitação, possibilidadora e possibilitante, do encontro com os objectos apropriados e reais do mundo externo; ou ainda, do conflito intra-psíquico aniquilador do funcionamento sanígeno à resolução integradora do Eu, permissora e propulsionante, do funcionamento saudável.
Parece fundamental fluir espontaneamente [diferente de não pensante, diferente de só sentinte (?)] para que a expressão do(s) conflito(s) possa ser também uma aproximação à sua resolução, que é também a mudança da parte vitoriosa (quando existente), não necessariamente para parte derrotada, mas muito para a coabitação integrada (tendencialmente) pacífica das “partes em conflito” (partes da (intra)psique em conflito - conteúdos inter-instâncias e/ou intra-instâncias). Por exemplo:

  • Tantas vezes, a “solução” está no mediador do conflito (p.e., Super-Eu) e tantas outras nas partes aparentemente (e/ou de facto) em guerra, isto é, acontece por vezes, que os conflitos parecem ser entre conteúdos de duas instâncias (p.e., entre o inconsciente e a “quase-pseudo-consciência”), mas no fundo essas (instâncias) podem estar também em luta/trabalho para a agradabilidade do Super-Eu.
  • [Mesmo os conflitos psicóticos, são também conflitos neuróticos (intra-psíquicos, maioritariamente depressogénicos), que depois se podem revelar (principalmente) na tipologia de conflito psicótico: mundo interno versus mundo externo (mesmo que originariamente se tenham formado por ditames desta própria relação: “Eu versus mundo externo” - o que também permite dizer, não de forma meramente invertida, que também os conflitos neuróticos têm como entidades basilares conflitos psicóticos)].
  • A agradabilidade ao Super-Eu, é também, necessariamente, a agradabilidade [(in)directa] aos cuidadores primários (já que esses, são os principais contribuintes/impressores para a formação do Super-Eu, inicial e basilar, e até para a sua existência), o que revela e torna relevante a dinâmica relacional do sujeito com o(s) outro(s) na sua vida mais tenra, como um dos principais impulsionadores conflituais ao longo de toda a vida do indivíduo humano. [Impulsionadores conflituais e/ou impressores das bases para a forma de lidar com as relações (dessa actualidade e posteriores) - internas e externas, da relação de objecto primário, à relação de objecto secundário, até à “nova relação” - posteriormente tornada potencial e/ou aparentemente principal.]
  • [Parece-me necessário salientar (apesar da postura meramente exemplificativa/ilustrativa e não contemplativa da realidade global) que também existem conflitos intra-instância-psíquica, isto é, aqueles que ocorrem dentro de uma única instância psíquica (p.e.: duas ou mais entidades/conteúdos desejantes simultaneamente incompatíveis - id; duas ou mais entidades/conteúdos de valor e/ou moral simultaneamente incompatíveis - Super-Eu; etc.), para que se possa elevar e/ou aprofundar o pensamento (talvez principalmente sobre os afectos - essas entidades de conteúdo, determinante e determinador, sobre outras entidades psíquicas especialmente subjugadas a essa tão subjugatória). Por outras palavras, este tipo de conflitos (que podem ser de etiologia diversa - de dinâmica relacional intra-instância-psíquica, intra-psíquica-inter-instâncias-específicas, intra-psíquica-global, todas as hipóteses anteriores na relação entre elas, e, todas as hipóteses anteriores na relação com o mundo externo) podem ser considerados como elementos de potencial fomentador de desencadeamento sintomático-patogénico (visível), com ou sem luta/trabalho pela posterior agradabilidade aos ditames residentes no Super-Eu, já que muitos desses conflitos não chegam a sair da sua instância, sendo resolvidos intra-instância, ou não sendo resolvidos podem também permanecer apenas dentro da instância em questão sendo percebida a sua existência  maioritariamente através de conteúdos literais simbólico-representativos.]
  • Ainda a título de exemplo e para alargar a discussão, poderíamos pensar no potencial de patogenia decorrente de um Super-Eu “formado” por cuidadores primários em conflito e/ou em desacordo, p.e. um pai e uma mãe em desacordo e/ou em conflito na educação dum filho, e/ou um dos pais (ou os dois) com mensagens psicotóxicas. Não se deverá com isto pensar que será menor o potencial de patogenia de alguém com um Super-Eu formado principalmente através da relação com cuidadores primários que estiveram maioritariamente concordantes e com mensagens explicito-saudáveis (não contraditórias), já que a tarefa dos cuidadores primários é talvez uma das mais difíceis/exigentes tarefas da condição relacional humana, e também por isso, sujeita a ainda mais limites e falhas (não querendo com isto dizer que as falhas e os limites o são realmente, e, não querendo dizer que as outras tipologias relacionais são mais fáceis ou que não têm também limites e falhas, mas querendo dizer que as dificuldades das outras tipologias de relação são tipicamente, directa ou indirectamente, decorrentes das primeiras). Ainda podíamos juntar a este exemplo, a conjuntura de diversidade de cuidadores primários (principais) que pode existir, [desde um só pai a uma só mãe, a pais divorciados (com ou sem novo(a) companheiro(a)), à ausência de pais (com ou sem pseudo-substitutos), a pais adoptivos, a dois pais do mesmo sexo, etc.], estas e outras características do mundo externo, que depois de internalizadas idiossincráticamente se assumem como partes integrantes e autónomas do indivíduo.  

Assim, da psique em conflito (entre ela própria e/ou entre ela e o mundo externo, ou ambas), podem nascer duas grandes tipologias (de referência, mas não únicas) de visibilidade (literalidade) da existência conflitual, que é naturalmente permanente e necessária, como funcionamento regular e integrante da própria vida psíquica:
  1. (no) funcionamento sanígeno - a visibilidade conflitual apresenta-se, ao próprio e ao outro, em formato de sublimação partilhada (p.e.: actividade/expressão visível da resolução do conflito pela via do deslocamento objectal aceitável, suficientemente bom para uma real satisfação/frustração);
  2. (no) funcionamento patogénico - a visibilidade conflitual apresenta-se, ao próprio e/ou ao outro, em formato de sinal e/ou sintoma (p.e.: actividade/expressão visível da existência, contínua e continuada, do conflito sem que este encontre uma resolução suficientemente pacificadora para deixar de o ser).

    Desta forma, torna-se imprescindível, pelo menos referir que as generalizações acima (1 e 2), são no mínimo perigosas e absolutamente reducionistas das possibilidades infinito-limitadas a que a especificidade de caso impõe. Se quisermos uma análise cuidada, teremos que ir mais longe, até porque muitas vezes é extremamente díficil de distinguir as verdadeiras diferenças, quer entre  “sublimação partilhada” e “sinal e/ou sintoma”, quer entre “funcionamento sanígeno” e “funcionamento patogénico”. Ir mais longe, não passa apenas pela mera distinção, poderá ter que passar por entender que em ambos funcionamentos, independentemente de qual, a necessidade de compreensão dos afectos (e de toda a sua gigantesca envolvente) pode ser uma ponte/caminho entre, por exemplo, o mesmo humano, criar ou destruir, perante exactamente a mesma situação. Será errado pensar-se, sequer, por exemplo, que alguém em funcionamento patogénico estará mais próximo de destruir do que criar, do que aquele em funcionamento sanígeno, tal como (agora sim) o meramente inverso(?).
    Para se chegar ao encontro da diversidade interpretativa, parece ser preciso encarar a dita normalidade como uma “meta-normalidade”, isto é, o que está para além dela própria é tantas vezes, também, o que a constitui como tal, não pela diferença, mas pela pertença:

  • “Não basta dizer-se que alguém não joga com o baralho todo, quando tantas vezes até joga com mais (ou outras/diferentes) cartas, se ainda por cima a própria pessoa que disse que alguém não joga com o baralho todo, joga com o mesmo baralho que essa outra pessoa inventou”. Até que ponto as psicopatologias não são também pertença da dita normalidade, já que sem elas, tantas vezes, não haveria, por exemplo, algumas grandes criações [através dos grandes (des)equilíbrios],  que depois são utilizadas pelos ditos normais, na sua dita normalidade?

    No entanto, parece ser no e do encarceramento sobre si próprio que se encontra o verdadeiro disfuncionamento e/ou funcionamento verdadeiramente patogénico (uma espécie de psicose permissora do funcionamento intra-neurótico como o funcionamento quase exclusivo), isto é, na não partilha da criação funcional (p.e. criação artística não partilhada - apesar de ainda assim esta poder ser, por vezes, verdadeiramente funcional por cumprir a função sublimatória, ainda que sem ser partilhada ao outro) e na não criação funcional ou criação de actividade disfuncional (p.e. actividade obsessivo-compulsiva de verificação da fechadura de uma porta).
    Por fim, importa novamente questionar (verdades tidas como elementares e seguras, quase religiosamente dogmáticas e, por isso extremamente difíceis de se acreditar sequer que se podem colocar em questão), para que a mudança seja realmente idiossincrática e não mera pertença a uma pré-verdade unicista, onde cabe tudo e todos, o que se torna tão parecido com o mesmo que nada. Como por exemplo, até que ponto existe de uma verdadeira consciência, enquanto instância intra-psíquica? A análise da análise2, serve de exemplo para a hipótese da impossibilidade duma verdadeira consciência do presente, considerando o presente como a única existência real (única realidade em que realmente vivemos/estamos - “o aqui e agora”), podemos então também considerar a consciência como uma pseudo-consciência e a pseudo-consciência como uma quase-pseudo-consciência do passado e do futuro (sendo que toda e qualquer forma de “consciência” se dá exclusivamente no presente)?

  • 2 Primeiro é necessário sentir para depois pensar os afectos, não é possível pensar sobre o que se sente sem se ter sentido primeiro. (Já que pensar sobre o que se está a sentir no próprio momento que se sente implica, no fundo, pensar-se sobre um passado ainda demasiado recente para ser distinguido do presente. O presente passa instantaneamente, uma velocidade cuja capacidade perceptiva humana não consegue destrinçar.)



Castanheira, J. (2011). Literalidade e latência: da verdade unicista à mudança idiossincrática. Portal dos Psicólogos. ISSN: 1646-6977 - nº 365 | 31 Out 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

“Censura por transferência quotidiana.”


“(…)A polícia vai surgindo na minha cabeça, a cada curva e em cada esquina, imagino-os lá à frente, chego a ver as luzes e os coletes reflectores, como se houvesse alguma coisa pela qual eu pudesse ser multado(a), como se fosse necessário eles estarem lá para reprimirem aquilo que me vai chegando à consciência(…) Chego mesmo a ficar nervoso(a), a tremelicar, com medo de ser apanhado(a) na operação-stop que se aproxima, onde após uma vistoria detalhada ao meu carro, eu tenha que pagar uma multa e lidar com esse prejuízo, mesmo sabendo que na verdade tenho tudo em ordem(…)”
A transcrição acima de uma sessão de terapia (devidamente autorizada e com a confidencialidade assegurada), revela-se como um exemplo caricaturante de uma forma de transferir a censura interna de conteúdos inconscientes, emergentes, mas inaceitáveis e censuráveis pelos valores e pela moral, para uma censura aparentemente externa. Transformando-os “deslocado-projectivamente” em realidade quotidiana imaginada, a censura do (pretenso) outro actua na ausência do funcionamento eficaz da censura interna para esses conteúdos latentes, que encontram agora espaço para se libertarem da polícia interna (expressando-se pela polícia da realidade externa), e que esse Eu encontra, numa desesperada tentativa de último recurso, uma forma alternativa de continuar a não ver, ou de ver “transferencial-distorcidamente” aquilo que ainda não consegue ver como de facto significa.
Por outras palavras, a censura continua a ser de facto interna, apesar de se tentar munir de recursos percebidos como do exterior. A representação simbólica apresenta-se como uma arma, talvez uma das últimas, para a manutenção da vitória que até então pertencia a essa instância “consciente (apenas) do tolerável/aceitável”, mas que agora se vê a perder nesse conflito. As armas do inconsciente parecem ainda assim utilizar essa mesma arma defensiva da subconsciência para a atacar, dando-lhe expressão simbolizada na “pseudo-consciência”: “se não vês pelo que é, verás pelo símbolo que o representa”.
Parece ser típica esta transferência, onde são utilizados meios simbólicos através de elementos (possíveis de serem) reais (e) da realidade (quotidiana), para se “falar e dizer” coisas que não conseguem ser ditas directamente, devido a tantas vezes essas mesmas coisas serem demasiado perturbadoras e perturbantes para serem possíveis de serem “faladas e ditas” na sua forma primária/originária de significado. No fundo, utiliza-se um assunto “legítimo” em representação de um outro “ilegítimo”, aborda-se um tema que é aceitável para dar expressão a conteúdos que não o são.
O medo de ser apanhado pela polícia representa também o medo de se revelar a si próprio coisas que não estão “em ordem” e que são passíveis de “(auto)coima”, pois transgridem a lei (interna). O emaranhado intra-psíquico em conflito, encontra-se num enredo onde a punição interna já não basta para exercer de forma eficaz uma censura que faça permanecer inconscientes esses conteúdos (e, também por isso se recorre a ajuda da censura pseudo-externa). Agora, a necessidade de integração consciente torna-se imprescindível à resolução do conflito, já que parece não ser mais possível manter ou reenviar para o inconsciente os conteúdos perturbantes e perturbadores da (fantasiosa) homeostase pacífica do Eu. 
Para além disso, surgem ainda outros problemas: os conteúdos não deixarão de existir mesmo que sejam devolvidos ao inconsciente ou mesmo que nunca cheguem a ter uma oportunidade para se significarem na “pseudo-consciência”, e também, não deixarão de se tentarem expressar conscientemente (ainda que da forma possível/simbólica) enquanto não houver um objecto (receptor) capaz, sublimante ou directo, de satisfazer realmente a sua existência. 
Ou seja, os conteúdos existem quer o indivíduo queira ou não queira, quer os aceite ou não, e não irão deixar de existir só porque lhe são intra-desconhecidos. Mais, só parece ser possível que eles deixem de ser elementos perturbadores e perturbantes (tantas vezes disfuncionais e desencadeadores phato-sintomáticos) quando o “eu inteiro” encontrar espaço para a co-existência intra-psíquica tendencialmente pacificante entre os conteúdos emergentes do “id” (*desejo ainda latente) e a permissão (“consciente-directa” ou “inconsciente-subliminante”). Isso parece só acontecer, quando esses conteúdos do “id” encontram um objecto receptor suficientemente satisfatório e permitido simultaneamente pela censura (pois, por exemplo, se os ditos conteúdos encontrarem um objecto suficientemente capaz de os satisfazer e esse encontro com o objecto for também ele (re)censurado, o indivíduo encontra uma espécie de continuação do conflito anterior, agora com uma nova/diferente parte a vencer de facto o conflito).
*Revelo-vos agora, de forma meramente ilustrativo-reducionista, que os conteúdos correspondentes ao simbolismo do trecho inicialmente transcrito, são compostos (não só mas também) por pulsões sexuais, que fazem com que o indivíduo deseje objectos, proibidos por ele próprio. Não encontrando uma via para poder integrar de forma minimamente tolerável a concretização da satisfação genuína do desejo sexual, sequer com a tolerabilidade da sua existência, o conflito intra-psíquico decorrente da existência de “desejos indesejáveis” manifesta-se assim sintomaticamente numa quotidiano-disfuncional e disfuncionante quase paranóia persecutória, incontrolável, em correspondência com o incontornável desejo, que não encontra espaço para a satisfação relacional com o objecto. 
Ainda, por outro lado, a quase paranóia persecutória, também por ser incontrolável, encontra-se (também) com a defesa obsessiva de controlo aparentemente do mundo externo, numa tentativa, frustrada por ser deslocada (do interior para o exterior), de controlar aquilo que é por defeito incontornável/incontrolável na vida intra-psíquica do indivíduo, como é exemplo disso o desejo sexual (sucintamente) referido acima. Parece que, por muito que se “queira” não é possível escolher o que desejar ou que desejos ter (ou não ter), tal como não me parece exequível “escolher” uma nova “cor” para genuinamente se gostar, “só” porque seria “conveniente” gostar de outra “cor” que não aquela de que realmente se gosta (se é que se gosta dessa “cor”). 
Assim, quando esses “desejos não escolhidos” se tornam (im)pulsionadores disfuncionais do indivíduo, intra-psiquicamente e consequentemente na sua relação com o mundo externo, então acaba por ser (parcialmente) “desejável” lidar com esses indesejáveis não escolhidos de forma a restabelecer ou estabelecer a sanigeneidade (integrativa do Eu) também ela (parcialmente) desejada. Parte deseja, parte deseja não desejar, outra parte deseja outra coisa, o todo parece precisar compatibilizar os desejos incompatíveis (em simultâneo), para não se clivar patologicamente e poder assim prosseguir num caminho em que realmente se sinta a andar.
Castanheira, J. (2011). Censura por transferência quotidiana. Portal dosPsicólogos.
ISSN: 1646-6977 - nº358 | 12 Set 2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

“A quase pseudo-consciência relacional – Só: ser, estar, sentir (?) – uma (também) alusão à relação terapêutico-analítica.”


Nota introdutória: “palavra(s)” têm no texto seguinte uma dimensão semântica que ora se enquadra no seu literal significado, ora se encontra simbolizada, e, tantas vezes o discernimento da sua significação engloba ambas, ficando por vezes dúbia a aplicabilidade do quê a quando, permanecendo uma dúvida imprescindível e intencional à amplitude do sentir idiossincrático.

            (…) “Nunca antes aquelas simples e parcas palavras tinham tido valor, até que X mas disse!” (…) Daquela pessoa, aquele dizer transformou-se, transformou (ganhou valor, nasceu e ficou vivo). Não é o que as palavras dizem (per si), nem mesmo (só) o que elas nos querem dizer, é também o que quem as diz nos diz, de nós na relação com essa pessoa, nos diz dele e (talvez principalmente) dele em relação a nós, isso pode dizer-nos tanto sobre quem (também) somos… (poderíamos também pensar as palavras no sentido inverso, de nós para o outro, mas “aqui”, pretende-se visualizar, para já, a perspectiva daquele que nasce com o outro com quem aprende a “falar – com ou sem palavras”) … As palavras deixam de o ser, quando nelas, entre elas, não há relação (intra e/ou inter-humana)… Tal como deixaríamos de ser(-)humanos se fosse mesmo possível “real-mente” estarmos sós.
           
É sim possível sentirmo-nos sozinhos… [Por muito que seja difícil de compreender e aceitar, “aqui”, podemos, também e até, dizer que nunca estamos acompanhados, tal como nunca estivemos e nunca iremos estar, e isso, é de facto tão “lógico” quanto dizer precisamente o contrário… no fim (e no “princípio”) o que conta, o que prevalece, o que é mais forte, é o sentir – mesmo que tenham sido criadas (e mantidas) hiper estruturas e/ou organizações “(phato-)defensivas” (que não permitam, por exemplo, o encontro da pulsão com o objecto receptor, real ou “substitutivo-subliminante”, e que em vez disso as conduzam ao sintoma patogénico, sinal disso mesmo).]
           
Por muito que custe aos mais “fundamentalistas-absolutistas”, “este”, é um daqueles que se lhes abarca nos seus próprios conceitos de plenitude fantasmática, mas que os destrona pelo próprio premissar da inviolabilidade “fantasioso-racionalizante”: “simples-mente” sozinhos não existimos, até porque não conseguimos literal e “simbólica-mente” (sobre)viver.
           
Encontramo-nos no outro (e com o outro), o outro em nós, e o nós na relação (encontramos a partir de “aqui” um espaço para o vice-versa?). Talvez por isso a sensação de perda e do perdido se associe, uma e outra vez, ao sentimento de solidão… a depressão (que) começa no desgosto de “Amor”… tantas vezes no mais “primário”, repetido (à sua similitude, e por vezes até à exaustão) nas relações de objecto “secundário” por essa vida fora… até se encontrar “O” novo objecto na “nova relação primária”.

Claro que também estas palavras «até se encontrar “O” novo objecto na “nova relação primária”» seriam/serão apenas lugares vazios na plateia de um qualquer teatro onde nenhuma peça sequer está a decorrer, se a elas não juntarmos, não uma qualquer, mas “A” peça, “A” plateia e “O” teatro. Mesmo, e apesar, da pretensa metáfora se imiscuir no seu próprio reducionismo (in)tolerável, permito-me ainda assim, “com vocês”, “A-riscar”. 

Crónicas da Mente Esquecida,  por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 08/02/2011

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

“A quase pseudo-consciência relacional: o conflito e o confronto (resolutivo).”


Parece, até, que seria “normativo” pensar-se que as relações sanígenas seriam aquelas desprovidas de conflitos (com confronto), mas o que torna as relações com potencial de sanigeneidade é, também, a existência de espaço relacional para o confronto (preferencialmente com intencionalidade resolutiva) dos conflitos que necessariamente, nelas, têm que existir (quando elas são relações tendencialmente genuínas, verdadeiras).
No entanto, até se entende esse pensamento, desde que ele queira, pelo menos, significar que as relações saudáveis são (também) aquelas que pretendem resolver os seus conflitos e como tal, relações tendencialmente com menos conflitos por resolver, logo a emancipação da expressão “relações sem conflitos”.
Tantas vezes, quando os conflitos relacionais ficam reservados a cada um dos seres individuais da relação e não encontram espaço para a partilha, esses podem tender a tornarem-se num duplo “problema”: um intra-psíquico, outro inter-psíquico.
Ou seja, um conflito que pode, por exemplo, tornar-se num tabu, que não é falado, que não é discutido, que não é verbalizado, que não encontra espaço para o confronto, faz-se de conta que não existe (ou todos sabem que existe e falam sem palavras), mas isso não faz com que ele deixe de estar lá (por resolver), a existir na idiossincrasia individual e sem expressão relacional (ou com expressão quase pseudo-relacional, num espaço relacional ambíguo e quase pseudo-subliminar, sujeito à diversidade e variabilidade interpretacionais, sujeito à fantasia do que é e do que pode ser).
Isso deixa uma margem de manobra de dimensão diversa e de amplitude imensa para a fantasia individual (por exemplo, a fantasia do que é o outro, do que é a relação, do que somos nós na relação, e mesmo do que somos nós), em contraponto com a realidade relacional (e individual). Do que dessa fantasia nasce e cresce, encontram-se demasiadas vezes as fontes dos acima ditos “problemas”… até um dia ela se desfazer (morta) pela realidade (ou não); até um dia se verificar que a fantasia não deixa de o ser, mesmo que possa ser compatível com a realidade do outro.
O outro em nós será sempre muito mais uma fantasia do que ele é (do que o que ele é mesmo), quando não encontramos espaço na relação para o vermos como ele é realmente (tal como, quando não encontramos espaço em nós para vermos mais ninguém/alguém do que nós próprios, tantas vezes nem para nos vermos a nós mesmos).

Crónicas da Mente Esquecida, por João Castanheira
in Jornal de Albergaria, 25/01/2011