“(…)A
polícia vai surgindo na minha cabeça, a cada curva e em cada
esquina, imagino-os lá à frente, chego a ver as luzes e os coletes
reflectores, como se houvesse alguma coisa pela qual eu pudesse ser
multado(a), como se fosse necessário eles estarem lá para
reprimirem aquilo que me vai chegando à consciência(…) Chego
mesmo a ficar nervoso(a), a tremelicar, com medo de ser apanhado(a)
na operação-stop que se aproxima, onde após uma vistoria
detalhada ao meu carro, eu tenha que pagar uma multa e lidar com esse
prejuízo, mesmo sabendo que na verdade tenho tudo em ordem(…)”
A
transcrição acima de uma sessão de terapia (devidamente autorizada
e com a confidencialidade assegurada), revela-se como um exemplo
caricaturante de uma forma de transferir a censura interna de
conteúdos inconscientes, emergentes, mas inaceitáveis e censuráveis
pelos valores e pela moral, para uma censura aparentemente externa.
Transformando-os “deslocado-projectivamente” em realidade
quotidiana imaginada, a censura do (pretenso) outro actua na ausência
do funcionamento eficaz da censura interna para esses conteúdos
latentes, que encontram agora espaço para se libertarem da polícia
interna (expressando-se pela polícia da realidade externa), e que
esse Eu encontra, numa desesperada tentativa de último recurso, uma
forma alternativa de continuar a não ver, ou de ver
“transferencial-distorcidamente” aquilo que ainda não consegue
ver como de facto significa.
Por
outras palavras, a censura continua a ser de facto interna, apesar de
se tentar munir de recursos percebidos como do exterior. A
representação simbólica apresenta-se como uma arma, talvez uma das
últimas, para a manutenção da vitória que até então pertencia a
essa instância “consciente (apenas) do tolerável/aceitável”,
mas que agora se vê a perder nesse conflito. As armas do
inconsciente parecem ainda assim utilizar essa mesma arma defensiva
da subconsciência para a atacar, dando-lhe expressão simbolizada na
“pseudo-consciência”: “se não vês pelo que é, verás pelo
símbolo que o representa”.
Parece
ser típica esta transferência, onde são utilizados meios
simbólicos através de elementos (possíveis de serem) reais (e) da
realidade (quotidiana), para se “falar e dizer” coisas que não
conseguem ser ditas directamente, devido a tantas vezes essas mesmas
coisas serem demasiado perturbadoras e perturbantes para serem
possíveis de serem “faladas e ditas” na sua forma
primária/originária de significado. No fundo, utiliza-se um assunto
“legítimo” em representação de um outro “ilegítimo”,
aborda-se um tema que é aceitável para dar expressão a conteúdos
que não o são.
O
medo de ser apanhado pela polícia representa também o medo de se
revelar a si próprio coisas que não estão “em ordem” e que são
passíveis de “(auto)coima”, pois transgridem a lei (interna). O
emaranhado intra-psíquico em conflito, encontra-se num enredo onde a
punição interna já não basta para exercer de forma eficaz uma
censura que faça permanecer inconscientes esses conteúdos (e,
também por isso se recorre a ajuda da censura pseudo-externa).
Agora, a necessidade de integração consciente torna-se
imprescindível à resolução do conflito, já que parece não ser
mais possível manter ou reenviar para o inconsciente os conteúdos
perturbantes e perturbadores da (fantasiosa) homeostase pacífica do
Eu.
Para além disso, surgem ainda outros problemas: os conteúdos não
deixarão de existir mesmo que sejam devolvidos ao inconsciente ou
mesmo que nunca cheguem a ter uma oportunidade para se significarem
na “pseudo-consciência”, e também, não deixarão de se
tentarem expressar conscientemente (ainda que da forma
possível/simbólica) enquanto não houver um objecto (receptor)
capaz, sublimante ou directo, de satisfazer realmente a sua
existência.
Ou seja, os conteúdos existem quer o indivíduo queira ou não
queira, quer os aceite ou não, e não irão deixar de existir só
porque lhe são intra-desconhecidos. Mais, só parece ser possível
que eles deixem de ser elementos perturbadores e perturbantes (tantas
vezes disfuncionais e desencadeadores phato-sintomáticos)
quando o “eu inteiro” encontrar espaço para a co-existência
intra-psíquica tendencialmente pacificante entre os conteúdos
emergentes do “id” (*desejo ainda latente) e a permissão
(“consciente-directa” ou “inconsciente-subliminante”). Isso
parece só acontecer, quando esses conteúdos do “id” encontram
um objecto receptor suficientemente satisfatório e permitido
simultaneamente pela censura (pois, por exemplo, se os ditos
conteúdos encontrarem um objecto suficientemente capaz de os
satisfazer e esse encontro com o objecto for também ele
(re)censurado, o indivíduo encontra uma espécie de continuação do
conflito anterior, agora com uma nova/diferente parte a vencer de
facto o conflito).
*Revelo-vos agora, de forma meramente ilustrativo-reducionista,
que os conteúdos correspondentes ao simbolismo do trecho
inicialmente transcrito, são compostos (não só mas também)
por pulsões sexuais, que fazem com que o indivíduo deseje objectos,
proibidos por ele próprio. Não encontrando uma via para poder
integrar de forma minimamente tolerável a concretização da
satisfação genuína do desejo sexual, sequer com a tolerabilidade
da sua existência, o conflito intra-psíquico decorrente da
existência de “desejos indesejáveis” manifesta-se assim
sintomaticamente numa quotidiano-disfuncional e disfuncionante quase
paranóia persecutória, incontrolável, em correspondência com o
incontornável desejo, que não encontra espaço para a satisfação
relacional com o objecto.
Ainda, por outro lado, a quase paranóia persecutória, também por
ser incontrolável, encontra-se (também) com a defesa obsessiva de
controlo aparentemente do mundo externo, numa tentativa, frustrada
por ser deslocada (do interior para o exterior), de controlar aquilo
que é por defeito incontornável/incontrolável na vida
intra-psíquica do indivíduo, como é exemplo disso o desejo sexual
(sucintamente) referido acima. Parece que, por muito que se “queira”
não é possível escolher o que desejar ou que desejos ter (ou não
ter), tal como não me parece exequível “escolher” uma nova
“cor” para genuinamente se gostar, “só” porque seria
“conveniente” gostar de outra “cor” que não aquela de que
realmente se gosta (se é que se gosta dessa “cor”).
Assim, quando esses “desejos não escolhidos” se tornam
(im)pulsionadores disfuncionais do indivíduo, intra-psiquicamente e
consequentemente na sua relação com o mundo externo, então acaba
por ser (parcialmente) “desejável” lidar com esses indesejáveis
não escolhidos de forma a restabelecer ou estabelecer a
sanigeneidade (integrativa do Eu) também ela (parcialmente)
desejada. Parte deseja, parte deseja não desejar, outra parte deseja
outra coisa, o todo parece precisar compatibilizar os desejos
incompatíveis (em simultâneo), para não se clivar patologicamente
e poder assim prosseguir num caminho em que realmente se sinta a
andar.
Castanheira,
J. (2011). Censura por transferência quotidiana. Portal dosPsicólogos.
ISSN: 1646-6977 - nº358 | 12 Set 2011
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