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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

“Censura por transferência quotidiana.”


“(…)A polícia vai surgindo na minha cabeça, a cada curva e em cada esquina, imagino-os lá à frente, chego a ver as luzes e os coletes reflectores, como se houvesse alguma coisa pela qual eu pudesse ser multado(a), como se fosse necessário eles estarem lá para reprimirem aquilo que me vai chegando à consciência(…) Chego mesmo a ficar nervoso(a), a tremelicar, com medo de ser apanhado(a) na operação-stop que se aproxima, onde após uma vistoria detalhada ao meu carro, eu tenha que pagar uma multa e lidar com esse prejuízo, mesmo sabendo que na verdade tenho tudo em ordem(…)”
A transcrição acima de uma sessão de terapia (devidamente autorizada e com a confidencialidade assegurada), revela-se como um exemplo caricaturante de uma forma de transferir a censura interna de conteúdos inconscientes, emergentes, mas inaceitáveis e censuráveis pelos valores e pela moral, para uma censura aparentemente externa. Transformando-os “deslocado-projectivamente” em realidade quotidiana imaginada, a censura do (pretenso) outro actua na ausência do funcionamento eficaz da censura interna para esses conteúdos latentes, que encontram agora espaço para se libertarem da polícia interna (expressando-se pela polícia da realidade externa), e que esse Eu encontra, numa desesperada tentativa de último recurso, uma forma alternativa de continuar a não ver, ou de ver “transferencial-distorcidamente” aquilo que ainda não consegue ver como de facto significa.
Por outras palavras, a censura continua a ser de facto interna, apesar de se tentar munir de recursos percebidos como do exterior. A representação simbólica apresenta-se como uma arma, talvez uma das últimas, para a manutenção da vitória que até então pertencia a essa instância “consciente (apenas) do tolerável/aceitável”, mas que agora se vê a perder nesse conflito. As armas do inconsciente parecem ainda assim utilizar essa mesma arma defensiva da subconsciência para a atacar, dando-lhe expressão simbolizada na “pseudo-consciência”: “se não vês pelo que é, verás pelo símbolo que o representa”.
Parece ser típica esta transferência, onde são utilizados meios simbólicos através de elementos (possíveis de serem) reais (e) da realidade (quotidiana), para se “falar e dizer” coisas que não conseguem ser ditas directamente, devido a tantas vezes essas mesmas coisas serem demasiado perturbadoras e perturbantes para serem possíveis de serem “faladas e ditas” na sua forma primária/originária de significado. No fundo, utiliza-se um assunto “legítimo” em representação de um outro “ilegítimo”, aborda-se um tema que é aceitável para dar expressão a conteúdos que não o são.
O medo de ser apanhado pela polícia representa também o medo de se revelar a si próprio coisas que não estão “em ordem” e que são passíveis de “(auto)coima”, pois transgridem a lei (interna). O emaranhado intra-psíquico em conflito, encontra-se num enredo onde a punição interna já não basta para exercer de forma eficaz uma censura que faça permanecer inconscientes esses conteúdos (e, também por isso se recorre a ajuda da censura pseudo-externa). Agora, a necessidade de integração consciente torna-se imprescindível à resolução do conflito, já que parece não ser mais possível manter ou reenviar para o inconsciente os conteúdos perturbantes e perturbadores da (fantasiosa) homeostase pacífica do Eu. 
Para além disso, surgem ainda outros problemas: os conteúdos não deixarão de existir mesmo que sejam devolvidos ao inconsciente ou mesmo que nunca cheguem a ter uma oportunidade para se significarem na “pseudo-consciência”, e também, não deixarão de se tentarem expressar conscientemente (ainda que da forma possível/simbólica) enquanto não houver um objecto (receptor) capaz, sublimante ou directo, de satisfazer realmente a sua existência. 
Ou seja, os conteúdos existem quer o indivíduo queira ou não queira, quer os aceite ou não, e não irão deixar de existir só porque lhe são intra-desconhecidos. Mais, só parece ser possível que eles deixem de ser elementos perturbadores e perturbantes (tantas vezes disfuncionais e desencadeadores phato-sintomáticos) quando o “eu inteiro” encontrar espaço para a co-existência intra-psíquica tendencialmente pacificante entre os conteúdos emergentes do “id” (*desejo ainda latente) e a permissão (“consciente-directa” ou “inconsciente-subliminante”). Isso parece só acontecer, quando esses conteúdos do “id” encontram um objecto receptor suficientemente satisfatório e permitido simultaneamente pela censura (pois, por exemplo, se os ditos conteúdos encontrarem um objecto suficientemente capaz de os satisfazer e esse encontro com o objecto for também ele (re)censurado, o indivíduo encontra uma espécie de continuação do conflito anterior, agora com uma nova/diferente parte a vencer de facto o conflito).
*Revelo-vos agora, de forma meramente ilustrativo-reducionista, que os conteúdos correspondentes ao simbolismo do trecho inicialmente transcrito, são compostos (não só mas também) por pulsões sexuais, que fazem com que o indivíduo deseje objectos, proibidos por ele próprio. Não encontrando uma via para poder integrar de forma minimamente tolerável a concretização da satisfação genuína do desejo sexual, sequer com a tolerabilidade da sua existência, o conflito intra-psíquico decorrente da existência de “desejos indesejáveis” manifesta-se assim sintomaticamente numa quotidiano-disfuncional e disfuncionante quase paranóia persecutória, incontrolável, em correspondência com o incontornável desejo, que não encontra espaço para a satisfação relacional com o objecto. 
Ainda, por outro lado, a quase paranóia persecutória, também por ser incontrolável, encontra-se (também) com a defesa obsessiva de controlo aparentemente do mundo externo, numa tentativa, frustrada por ser deslocada (do interior para o exterior), de controlar aquilo que é por defeito incontornável/incontrolável na vida intra-psíquica do indivíduo, como é exemplo disso o desejo sexual (sucintamente) referido acima. Parece que, por muito que se “queira” não é possível escolher o que desejar ou que desejos ter (ou não ter), tal como não me parece exequível “escolher” uma nova “cor” para genuinamente se gostar, “só” porque seria “conveniente” gostar de outra “cor” que não aquela de que realmente se gosta (se é que se gosta dessa “cor”). 
Assim, quando esses “desejos não escolhidos” se tornam (im)pulsionadores disfuncionais do indivíduo, intra-psiquicamente e consequentemente na sua relação com o mundo externo, então acaba por ser (parcialmente) “desejável” lidar com esses indesejáveis não escolhidos de forma a restabelecer ou estabelecer a sanigeneidade (integrativa do Eu) também ela (parcialmente) desejada. Parte deseja, parte deseja não desejar, outra parte deseja outra coisa, o todo parece precisar compatibilizar os desejos incompatíveis (em simultâneo), para não se clivar patologicamente e poder assim prosseguir num caminho em que realmente se sinta a andar.
Castanheira, J. (2011). Censura por transferência quotidiana. Portal dosPsicólogos.
ISSN: 1646-6977 - nº358 | 12 Set 2011